19 março 2024

Nuno Júdice (1949 - 2024)

Se quiseres fazer azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice 

18 março 2024

Do quotidiano *

 Formava-se a primeira comunidade de seres humanos na Terra. Só algum tempo depois, já esta comunidade dominava o vocabulário, a construção das frases e a técnica do neologismo, é que surgiu a palavra quotidiano. Até então as actividades eram ocasionais, avulsas, impulsivas: a caça, o cumprimento das necessidades fisiológicas ou a satisfação das pulsões sexuais, a atenção ao céu como lugar geométrico de todos os mistérios. Só algum tempo depois, repete-se, é que o avulso se tornou em quotidiano, e se definiram momentos certos e regulares para as coisas. 


Há actividades quotidianas que nos acompanham desde o homem das cavernas, ou desde os homens que começaram por dar sons identificadores às coisas, sons esses que redundaram em palavras que, alinhadas, formaram um todo inteligível que permitiu a comunicação, a troca comercial, o primórdio do afecto. Com o tempo, e com aquilo que pensamos ser a evolução da espécie, o quotidiano foi-se alterando: já não caçamos, mas mantemos o desejo sexual; temos mais hábitos de higiene, mas o céu pode ser apenas, e só, a folha de papel onde plasmamos mistérios: projecções matemáticas, tendências probabilísticas, caracterização das núvens.

***

A tecnologia relativamente barata e ao alcance de um dedo gerou milhões infindos de fotografias nos últimos 20 ou 30 anos. Fotografaram-se as crianças na praia, no banho, na primeira festa, no primeiro jogo de futebol; fotografou-se a namorada, o primo, o almoço de sardinhas assadas numa mesa gordurosa, o desafio do Sporting, a festa de Carnaval, ou ainda Chicago, esse espectáculo de amor e traição que alguns colégios fantasiaram pelo Natal; fotografou-se uma fralda cheia de cocó que se mandou à mãe de férias, a boca suja da primeira sopa de legumes, a viagem de comboio pela Europa com aromas de suor, má comida e desejos de jovem adulto; fotografou-se o grupo de amigos bêbedos, as amigas com ar provocante, as roupas práticas e ligeiras que mataram uma certa elegância feminina. Por último, cada um fotografou-se a si próprio: num grupo a rir, mascarado de fantasia, com adornos de photoshop, em frente de uma cascata tropical, de uma igreja rococó ou de um prato pejado de calorias e triglicéridos. Tudo se fotografou, ninguém deixou de ser fotografado. Milhões e milhões de fotografias sem direito ao esquecimento a circular no éter, a revelar um quotidiano moderno, semi-líquido, volátil, prático, existente.      

Por motivos que não vêm ao caso, andei de roda de fotografias relativamente antigas, com 50 ou 60 anos, talvez - muitas antes ainda de eu existir. São de uma época em que a tecnologia se revestia de uma máquina cara, usada em momentos específicos, porque o resto não interessava ser fotografado - havia o custo da fotografia, mas havia, também, uma certa sensação resguardada das coisas.

Imaginemos que o tempo passado só poderia ser decifrado por meio de escritos e de imagens da época e que, munido desses artefactos, decifrávamos um estilo de vida. Olho para aquelas fotografias que fui retirando avulsas de uma caixa e o que encontro? Elegância, cuidado, pouco improviso; mas também encontro uma certa gravitas, uma adultez precoce face aos nossos tempos. Não são fotografias do quotidiano, mas fotografias de festas, de jantares, de comemorações, de encontros. São fotografias que permitem recordar uma certa estética, mais do que uma certa realidade.  

Entre o quotidiano do homem das cavernas e o quotidiano do século XX a diferença está, essencialmente, no pudor. Mantêm-se os desejos, as pulsões, as necessidades de sustento, o céu como interrogação, o projecto de amor. Mudou a forma e, nalguns casos, o espaço desse mesmo quotidiano. O que mudou para o século XXI? A tecnologia que permite revelar tudo, a vontade humana que pretende mostrar tudo. As fotografias que eu vi não eliminavam a existência do quotidiano - o bebé de boca suja, o cocó na fralda, a sardinhada gordurosa, o desejo carnal, a informalidade de uma noite mais excessiva. As fotografias que eu vi revelavam, acima de tudo, a importância das coisas, não a existência das coisas.  

JdB  

* publicado originalmente a 4 de Dezembro de 2017

17 março 2024

V Domingo do tempo da Quaresma

 EVANGELHO – João 12, 20-33

Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
Veio então uma voz do céu que dizia:
«Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O».
A multidão que estava presente e ouvira
dizia ter sido um trovão.
Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou».
Disse Jesus:
«Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir;
foi por vossa causa.
Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado.
Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo.
E quando Eu for elevado da terra,
atrairei todos a Mim».
Falava deste modo,
para indicar de que morte ia morrer.

14 março 2024

Poemas dos dias que correm

Mosteiro da Batalha, Fevereiro de 2024

Tenho uma grande constipação,

Tenho uma grande constipação,

E toda a gente sabe como as grandes constipações

Alteram todo o sistema do universo,

Zangam-nos contra a vida,

E fazem espirrar até à metafísica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.

Dói-me a cabeça indistintamente.

Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.

O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!

As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.

Não estarei bem se não me deitar na cama.

Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!

Preciso de verdade e da aspirina.

14-3-1931

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 48.

13 março 2024

Vai um gin do Peter’s ?

EDUCAR COM E PELA ARTE

Uma reflexão magnífica, partilhada por mão amiga, interpela-nos sobre o papel que a arte deveria ter no currículo escolar, sendo quase omissa. Com a autoridade de quem está associado a colégios de renome, desde há vários séculos, saberá avaliar como poucos o real impacto destas interrogações e recomendações.  

No argumentário apresentado, a arte surge como meio para se atingir um conjunto amplo de objectivos pedagógicos, em geral, de natureza mais subtil e profunda do que a transmissão pura e dura de novos conhecimentos.  

Para vários dos objectivos visados poder-se-iam acrescentar outros métodos complementares como, por exemplo, uma maior interacção com a natureza. É eloquente a tradição (hoje, em desuso) em países germânicos e nórdicos de incumbir crianças de tenra idade do cultivo de plantas ou do cuidado de animais domésticos. Tratava-se de uma tarefa responsabilizante e não de um hobby ligeiro e inconsequente. Aliás, era frequente exigirem-se resultados, havendo relatos autobiográficos sobre os castigos aplicados aos pobres filhos, quando uma planta, por exemplo, não medrava capazmente. Em muitos dos reinos e Estados que vieram a integrar a Alemanha, no século XIX, assim como na Áustria, era comum haver gaiolas de madeira decorativas penduradas nas janelas dos quartos das crianças, bem visíveis da rua, para exibir os pássaros que estavam ao cuidado dos seus pequenos donos. Quem tinha jardins costumava consagrar um canteiro à responsabilidade da miudagem. Ressalvando os exageros, os perfeccionismos ou, pior ainda, os pretextos para a agressividade paterna/materna com os mais novos, percebe-se que persistem inúmeros aspectos onde a educação escolar e familiar tem enorme potencial de enriquecimento. Mas para lá das melhores receitas didácticas, o principal factor-chave de sucesso na educação continuará a residir e depender das pessoas envolvidas – educandos e educadores – como a História confirma com clareza meridiana. 

«A arte é urgente

O que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?

Não sou um entendido de arte, estou longe de o ser. Nem sequer me parece que tenha uma sensibilidade particular ou mais apurada do que a média das pessoas que pisam este mundo. No entanto, considero que a arte é urgente. Tão urgente como a matemática e a engenharia.

Pergunto-me muitas vezes porque razão no nosso sistema educativo não é dada a mesma importância à educação visual, à literatura, à pintura, à música, que é dada à matemática, ao português, à ciência, à fisico-química. Porque razão consideramos a arte como matéria secundária? O que é que isto diz da forma como olhamos para nós próprios, para a vida e para o mundo? Não significará que o nosso olhar se tornou demasiado técnico e que as nossas preocupações se prendem sobretudo com questões de eficácia e de produtividade? É assim queremos viver?

E ainda mais importante: o que é que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?

A atenção e o tempo

A atenção é um bem preciosíssimo, porque é aquilo capaz de nos ancorar ao presente. Nestes tempos que vivemos, a nossa atenção é alvo de uma competição feroz e, geralmente, muito bem sucedida. Vivemos muitas vezes atentos ao que não interessa, que é o mesmo que dizer: vivemos desatentos.

A arte é, sobretudo, atenção. É a capacidade de olhar com intenção, é a capacidade de o olhar se demorar. É uma rebelião contra a voracidade. A arte ensina a atenção.

Mas desaprendemos a demorar-nos. Tornámos a espera numa fraqueza nossa, como se fosse necessariamente algo a combater.

Temos publicado no instagram da @provocasj uns vídeos com umas canções originais e é assustador ver as estatísticas das visualizações: a percentagem de pessoas que chega aos seis segundos de vídeo ronda os 50%. Independentemente da qualidade da canção, aguentar apenas seis segundos é nem sequer dar hipótese! Não me parece nada sustentável viver com um spam de atenção de seis segundos.

A profundidade

Sem tempo não existe profundidade. A profundidade precisa de tempo. Não são precisos mais do que uns segundos para nos darmos conta da vastidão do nosso mundo interior, do nosso avesso, mas são precisos muitos anos (provavelmente a vida toda) para entrarmos nessa vastidão.

A arte é uma porta de entrada na profundidade, é uma linguagem que procura decifrar o avesso das coisas. A arte dá-nos vocabulários e gramáticas para lermos a vastíssima experiência humana que não fica à superfície e para olharmos as coisas a partir da profundidade.

A tensão das perguntas não respondidas

Temos dificuldade em conviver com o inacabamento e com a incerteza. Preferiríamos banir da nossa vida tudo o que é fonte de dúvida. Gostaríamos de poder controlar a existência e ter as respostas certas de antemão, sem corrermos o risco de falhar. Inevitavelmente vivemos na tensão das perguntas não respondidas e estas perguntas não serão respondidas da mesma forma que se resolve uma conta matemática.

A arte não tem medo de habitar esta tensão. Não tem a pretensão de resolver a vida de uma forma simples e mágica, mas cria espaço para que a incerteza e a dúvida sejam acolhidas como companheiras de caminho. A arte sabe ver a beleza da imperfeição das coisas e das perguntas por responder.

O silêncio

A ausência de silêncio é, talvez, das maiores perdas dos tempos recentes. Existe hoje uma incapacidade muito maior para enfrentar o silêncio e o que de bom e de duro o silêncio traz. Tenho medo que vivamos enterrados em analgésicos que contornam o silêncio e a possibilidade de escutar o lado de dentro da vida.

A arte ensina o silêncio, de alguma forma, convoca-o e exige-o. É evidente que posso ir ao Louvre e tirar uma selfie com a Monalisa, mas para ver bem e para ouvir bem é preciso silêncio. De outro modo, eu estarei a tapar a vista do que vejo e a gritar-me ao ouvido do que ouço. Com o seu silêncio, a arte ajuda-me a tirar-me da frente e a escutar verdadeiramente o que me está a ser dito.

A imaginação e a criatividade

Sustento a tese de que, por vivermos inundados de imagens e de estímulos, a nossa imaginação empobreceu-se e a nossa criatividade está entorpecida. Sermos bombardeados continuamente de imagens e ruído ocupa muito espaço. Dá a sensação de que estamos a ser constantemente entretidos e que já não há espaço para o tédio e para o aborrecimento.

Acredito que uma parte da arte nasça do tédio, deste espaço que se abre, que não está ocupado, onde há lugar para o novo. Parece-me que todos precisamos deste espaço desocupado: não é um lugar fácil para os nossos olhos habituados a tanto espetáculo, mas é um lugar importante para não nos deixarmos viver meramente entretidos.

Não acho que a arte seja entretenimento, diria que é muito mais uma provocação, um confronto, um grito, e, por isso, pode ser incómoda e desconcertante. Mas é exatamente isso que nos diz que a vida é demasiado preciosa para a perdermos em passatempos.

A paixão

Lembro-me bem da paixão que sentia quando, há uns anos, conseguia comprar ou me ofereciam um álbum novo ou quando apanhava na rádio alguma música de que gostava verdadeiramente. Estou bastante certo de que nesse tempo, em que não estava tudo simplesmente disponível ou que não tinha constantemente todas as possibilidades à mão, a minha paixão pela música era incomparavelmente maior. De alguma forma, parece-me que ter tudo disponível e garantido, sempre e em todo o lado, tira valor às coisas e rouba-nos a paixão, torna-nos apáticos, no sentido etimológico da palavra: sem paixão.

Esta “tirania das possibilidades” também nos chega aos olhos e sinto que é hoje muito mais difícil maravilhar-nos com alguma coisa. Porque se estamos em overdose de informação e entretenimento, dificilmente nos conseguiremos deter para saborear o que quer que seja. Tornámo-nos extremamente impacientes.

Ao dar-nos atenção, a arte devolve-nos o olhar das crianças que se deixam assombrar por tudo, para quem tudo é novidade. Devolve-nos gosto pelas coisas simples e vulgares que, para os olhares desimpedidos, ganham a carga de milagres. A arte pode-nos sacudir e acordar-nos de uma vida desapaixonada.

Curiosamente, quase tudo aquilo que foi dito acima poderia ter sido dito em relação à fé e às dificuldades que encontramos hoje para a viver e a transmitir. Tenho a impressão de que o problema não está tanto nos conteúdos nem na forma como evangelizamos. Está no passo anterior: no terreno em que queremos semear, que tem pouco espaço para acolher. Sinto que, muitas vezes, a nossa ação deveria situar-se em criar espaço e disponibilidade nos outros (e em nós): abrir à sensibilidade e ao silêncio, cultivar a atenção e a profundidade, ajudar a ver e a escutar, desenvolver a imaginação e a criatividade para acolher o novo.

Portanto, considero que a arte é urgente, não apenas como forma de expressar a fé, mas também como antecâmara, como preparação do terreno, como lugar de fecundidade.»

P. Duarte Rosado, sj
1 Março 2024 – no portal Ponto SJ.PT

Uma experiência cheia de humor e ironia, levada a cabo há década e meia, expos as incongruências de muitos especialistas em arte, suscitando perguntas sobre aquele conceito e o mundo infindo que lá cabe. Tudo começou pelo convite a 12 crianças de 2 e 3 anos para colorirem, com as mãos, uma tela em branco. Cumprida a primeira tarefa, o quadro preenchido a manchas policromáticas foi sorrateiramente pendurado numa parede da célebre feira de arte contemporânea europeia – a ARCO de Madrid. Depois, gravaram-se os comentários estarrecedores (para dizer o menos) do público erudito, entre artistas e galeristas, q.b. reveladores dos equívocos a que a pintura dita abstracta se presta:  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

12 março 2024

Da mentira como inexactidão

Convento de Cristo (Tomar), Fevereiro de 2024

Em Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro (algumas delas) diz Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos: 

Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto.

Talvez não fizesse mal aos políticos com um certo sentido de humor lerem Álvaro de Campos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas a dizerem que são optimistas, que acreditam no próximo, que são pela verdade ou que são muito francos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas falarem sempre bem de si próprias, não porque, em bom rigor, se sintam muito boas, mas porque sentem que ninguém acredita nelas se elas disserem quem? Eu? Eu sou um pessimista... A mim levava-me às urnas alguém que dissesse com transparência: abomino a mentira, porque é uma inexactidão. Não abomina a mentira porque não está certo, mas porque é uma inexactidão. A cereja em cima do bolo seria a invectiva contra as histórias de crianças: não gosto da Cinderela; há ali uma inexactidão que me incomoda.   

JdB

10 março 2024

IV Domingo do tempo da Quaresma

 EVANGELHO: João 3, 14-21

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n’Ele a vida eterna.
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.

08 março 2024

Poemas dos dias que correm

Poemas Canhotos

em boa verdade houve tempo em que tive uma
ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que devia morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade

Herberto Helder

07 março 2024

De uma ida a Olivença

 

A convite de pessoas que me são próximas, voltei a Olivença este ano, desta vez para assistir a 3 corridas - uma das quais uma novilhada, de cujo cartel fazia parte um português chamado Tomás Bastos. 

Ir aos toiros a Olivença é fazer uma espécie de peregrinação sem promessas, mas com desconforto. Começo pelo desconforto. 

Na verdade, só lá vai quem gosta muito: a praça é acanhada, num bocado de pedra (onde nos assentamos) onde nem um rabo cabe, tem de caber um rabo mais os pés da pessoas que está a trás de nós. A estática e os movimentos - os nossos, os dos que estão à nossa frente e os dos que estão atrás de nós - têm de ser síncronos, isto é, temos de abrir as pernas para que o vizinho da frente se encaixe, temos de confiar que a pessoa atrás de nós abra as pernas, para que nós próprios nos encaixemos. Quando nos levantamos, convém que todos o façam em simultâneo, para não haver desequilíbrios. 

Uma corrida de toiros é um espectáculo a que se deve assistir em silêncio, para permitir a concentração de toiro e toureiro. No entanto, há pessoas que falam, que gritam, que desconcentram os intervenientes. Há os que o fazem por ignorância, há os que o fazem por excesso de álcool no sangue.

O reverso da medalha deste desconforto é a convivência com uma certa tribo, como se fossemos todos iguais nesta peregrinação a um local de devoção. As pessoas perguntam-se de onde são (metade dos espectadores são portugueses) fazem graça com isso. Um local à nossa frente ofereceu-nos vinho, queijo e chouriço, o outro disponibiliza um chapéu de chuva. Fazemos todos parte de uma certa irmandade que suporta o frio, a chuva e o desconforto em nome de um espectáculo que faz parte de uma cultura, seguramente, mas que está longe de ser popular. Quem lá vai é aficionado, companheiro da mesma peregrinação.

Para mim, o reverso da medalha do desconforto (dois conhecidos portugueses compraram três bilhetes para ficarem mais à vontade) é, também, o ritual inerente a uma corrida de toiros: a superstição, a forma de andar ou de colocar o queixo, a maneira de atravessar a arena arrastando um capote, um sem número de pormenores que faz parte daquela festa, que empresta à coreografia que há em tudo um pormenor que nem sempre é percebido - ou valorizado.

 

Tal como referi acima, uma das corridas a que assisti era uma novilhada; isto é, não se tourearam toiros com 4 ou 5 anos, mas novilhos com 3 anos, com tudo o que isso representa de diferença em termos de peso e bravura. Falamos, no entanto, de animais com 400 e muitos quilos. Em Portugal um novilheiro tem de ter pelo menos 16 anos. Tomás Bastos, o novilheiro português que se estreou em Olivença com picadores, deverá ter 17 anos, a mesma idade dos seus colegas de cartel. 

Na fotografia, um deles a executar uma sorte de gaiola, que consiste em receber o novilho (ou toiro) assim que ele sai dos curros.  

JdB

06 março 2024

Poemas dos dias que correm

O CIDADÃO DESCONHECIDO

Segundo apurou o Instituto de Estatística,
Contra ele nunca existiu qualquer queixa oficial,
E todos os relatórios sobre a sua conduta confirmaram:
No moderno sentido de uma palavra velha, ele era um santo,
Pois em tudo o que fez serviu a Grande Comunidade.
Com excepção da Guerra e até ao dia da reforma,
Trabalhou numa fábrica e nunca foi despedido ;sempre satisfez os seus patrões, Máquinas Fraude, Ltda.
Mas não era fura-greves nem tinha opiniões estranhas,
Pois o Sindicato informa que sempre pagou as quotas
(E o seu Sindicato tem a nossa confiança),
E o nosso pessoal de Psicologia Social descobriu
Que ele era popular entre os colegas e gostava de um copo.
A Imprensa não duvida de que comprava um jornal por dia
E que as reacções à publicidade eram cem por cento normais.
Apólices tiradas em seu nome provam que tinha todos os seguros,
Eo Boletim de Saúde mostra que esteve uma vez no hospital e saiu curado.
Tanto o Gabinete de Estudos dos Produtores como o da Qualidade de Vida declaram
Que estava plenamente sensibilizado para as vantagens da Compra a Prestações
E tinha tudo o que é preciso ao Homem Moderno:
Um gira-discos, um rádio, um carro e um frigorífico.
Os nossos inquiridores da Opinião Pública alegraram-se
Por ter as opiniões certas para a época do ano;
Quando havia paz, era pela paz, quando havia guerra, ele ia,
Era casado e aumentou com cinco filhos a população,
O que, diz o nosso Eugenista, era o número certo para um pai da sua geração,
E os nossos professores informam que nunca interferiu com a sua educação.
Era livre? Era feliz? A pergunta é absurda:
Se algo estivesse errado, com certeza teríamos sabido.

Wystan Hugh Auden
(1907 - 1973)
In "Leituras, Poemas do Inglês"
(Tradução de João Ferreira Duarte)

05 março 2024

A menina dos Correios *

São as meninas dos Correios, como numa dada altura eram as meninas dos Telefones. Sei do que falo, porque me dirijo amiúde ao posto mais próximo que tem um quadro de pessoal exclusivamente feminino. Compro selos, peço estampilhas de correio azul, levanto cartas registadas, atento nas últimas publicações. A menina lá está, fardada, com uns óculos tristes, um cabelo aloirado e desinteressante, um olhar irrequieto e envergonhado. Recebe simpatias com uma cara que ruboresce, enfrenta uma observação com desculpas que tendem para infinito. 

Esta menina dos Correios é uma rapariga nova, pintada de forma displicente, que poderia usar um letreiro em forma de súplica: não olhem para mim, finjam que eu não existo. Chama-se Clotilde e é filha de uma professora primária e viúva precoce de um motorista da Câmara Municipal. Convicta da irreversibilidade do estado civil, a senhora devotou-se por inteiro aos meninos, a quem transmitiu valores que formam as mentes e salvam as almas. Clotilde cresceu entre um aviso de recepção e um luto permanente, com uma Mãe que assumiu um pensamento constante: para onde caminhas tu, com esse feitio tímido e invisível? 

Um destes dias levaram-me a um recinto no lado oriental da cidade, recuperado para uma malta mais alternativa, desta que não se revê em lado nenhum da noite – ou que quer tudo em simultâneo. Celebrava-se o dia de África, pelo que o estabelecimento era o continente negro copiado e colado na União Europeia. 

Numa das salas dançava-se o kizomba: pernas que cruzam, ancas que roçam lateralmente para depois encaixarem de frente; a sensualidade, os cheiros, o ambiente, os sotaques, as saudades das noites africanas, do pôr-do-sol e do espaço sem fim. À minha frente, uma mancha negra movimentava-se ao som de uma toada ritmada e lasciva. No meio da pista, com um menear irrepreensível do corpo, uns cabelos loiros a revelarem cuidado, e uma saia curta que mal tapava umas pernas esguias, vi a Clotilde, esquecida dos carimbos e das encomendas, da franquia e do registo, a descobrir uma África que só conhece da TV Cabo. Com ela, um jovem negro com mais de 1,90 que lhe percorre o corpo como um alfaiate afaga uma peça de caxemira: com um vagar sensorial, de mão aberta e a toda a extensão do pano. 

Quando saí, ainda a vi beijando o Valter, empregado de uma oficina na margem sul - um beijo longo, húmido, carregado de desejo e erotismo, de fluidos trocados e cor de pele contrastante. O rapaz sente no corpo da Clotilde a geografia africana e mata as saudades com o tacto, porque a lonjura é uma cegueira, e mão que não toca é alma que não sente. Para ela, que tem o horizonte visual de um balcão ao nível dos olhos, o mecânico é um canal de viagens com interacção erótica.

No dia seguinte a jovem voltará a ser a mesma menina do Correio, tímida, envergonhada, com uma farda estilizada e um cabelo démodé. Almoçará jardineira de vitela com uma Mãe que fala de Deus às crianças – sendo que a inversa também é verdadeira. Engolirá, nostálgica, um pedaço de carne, porque é, também, de nostalgia que se faz a pergunta guardada num coração dividido: sabes fazer moamba, mamã

Conheço-a bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.


JdB

* publicado originalmente a 7 de Setembro de 2009

03 março 2024

III Domingo do Tempo da Quaresma

 EVANGELHO – João 2, 13-25

Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém.
Encontrou no templo
os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas
e os cambistas sentados às bancas.
Fez então um chicote de cordas
e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas
e derrubou-lhes as mesas;
e disse aos que vendiam pombas:
«Tirai tudo isto daqui;
não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito:
«Devora-me o zelo pela tua casa».
Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe:
«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»
Jesus respondeu-lhes:
«Destruí este templo e em três dias o levantarei».
Disseram os judeus:
«Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo
e Tu vais levantá-lo em três dias?»
Jesus, porém, falava do templo do seu corpo.
Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos,
os discípulos lembraram-se do que tinha dito
e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera.
Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa,
muitos, ao verem os milagres que fazia,
acreditaram no seu nome.
Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos
e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém:
Ele bem sabia o que há no homem.

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