27 março 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 GRANDEZA HUMANA NA SÍNDROME DE DOWN 

Em vésperas do Natal de 2021, um conjunto de produtores espanhóis e um português (Luís Matta de Almeida) lançaram um filme de animação sobre uma criança com um sonho improvável, uma condição difícil (para a maioria, incapacitante), mas uma vontade férrea e uma avó inspiradora, ou melhor, uma avó que a olhava com especial afeição, fazendo-a reconhecer-se única pelos melhores motivos. Aquela neta de olhos rasgados e minúsculos, por detrás de uns óculos redondos gigantes, chamava-se Valentina e sonhava ser trapezista. Mas atrapalhava ter síndrome de Down. 

As peripécias por que passa, bem acompanhada por amigos fiéis (brinquedos incluídos) e uma família estimulante, levaram Valentina a acreditar que seria capaz de concretizar os desejos mais ousados, até para crianças sem a sua anomalia cromossomática. As inúmeras incursões musicais e coreográficas do filme acentuam o tom construtivo do argumento, percebendo-se que flui sob um horizonte de infinitas oportunidades, alimentadas e viabilizadas pela ternura que envolve a protagonista: 


A dobragem para o italiano teve um requinte especial, porque a voz da heroína foi assumida por uma estudante de design gráfico com síndrome de Down – Alice di Gennaro – a primeira pessoa da sua condição a dobrar desenhos animados. A agenda muito concorrida de Alice confirma quanto a sua disfunção não a impede de ter um dia-a-dia cativante, ao jeito da sua idade. 

Alice di Gennaro também aposta alto e sonha ser cantora, modelo, influencer.

As estatísticas sobre as crianças com trissomia 21 são demasiado expressivas para poderem ser ignoradas. No mundo contabilizam-se 5 milhões e 400 mil pessoas e em Portugal conhecem-se 15 mil casos. 

Felizmente, na multiplicação de efemérides em que a ONU é perita, fez-se coincidir o início da Primavera com o Dia Internacional da Síndrome de Down – 21 de Março – instituído, em 2012, pela Assembleia das Nações Unidas. Felizmente que o aborto (vigente em inúmeros países) não conseguiu erradicar estas crianças do planeta. Ironicamente, era um dos objectivos do programa nazi de purificação da raça e descarte dos mais vulneráveis. Felizmente que, há várias décadas, ter trissomia 21 deixou de ser um estigma para a família e as crianças passaram a aparecer em público, com naturalidade. Felizmente que, no Ocidente, estas crianças podem frequentar o ensino normal, de modo a mitigar as suas dificuldades cognitivas e conseguir saídas profissionais válidas. Felizmente, há maior predisposição para reconhecer igual dignidade em cada indivíduo, mesmo os mais diferentes, reconhecendo que também eles são habitados por esperanças, desejos, talentos e fraquezas, merecedores de todo o apoio. Toda a sociedade sai beneficiada com a maior abertura à diferença, empenhando-se em ajudar cada qual a crescer, segundo as suas capacidades e características. Especificamente, os avanços na compreensão da trissomia 21 permitiram aumentar a longevidade média para os 60 anos, quando nos anos de 1980 rondava os 25!

O testemunho feliz de um miúdo brasileiro de 5 anos, ao colo da mãe, mostram a beleza que qualquer situação humana pode comportar. O vídeo emocionou o Brasil e inúmeros famosos comentaram-no, como a cantora Ivete Sangalo, que partilhou estas linhas: «Mães que transformam! Um vídeo maravilhoso para nos dizer o quanto o amor vê além»

Quantas vezes, são estas crianças os elementos mais divertidos e sociáveis da família, com maior apetência para se relacionar com todos, imunes a entraves e preconceitos sociais?  São, pelo menos, um sinal vivo de uma réstia de humanidade que persiste nas sociedades competitivas, onde é demasiado forte a tentação de descartar os menos produtivos, como tem alertado o Papa Francisco. Em meados do século XX, o grande (e heróico) geneticista francês Jérôme Lejeune dava o seguinte conselho aos pais das Valentinas: o que poderão perder em comodidade, vão centuplicar em humanidade! Ao invés, as cedências ao utilitarismo e a supostos ganhos de eficiência criam uma espiral de desumanização, em que, tarde ou cedo, todos seremos descartáveis, i.e., alvos a abater. 

A propósito de desmontar estereótipos segregadores e redutores: que lugar nos caberia no cortejo do Crucificado? Teríamos olhos para descortinar a verdade mais profunda e menos evidente no rosto desfigurado e, por isso, difícil de encarar do último dos Condenados? Ou nas Valentinas também diferentes ou nos milhões de enjeitados do planeta, de aspeto menos atraente? Somos um mundo estranho, capaz de alunar e desbravar o cosmos, mas incapaz de acabar com a pobreza e de reintegrar os proscritos da abundância. 

Conseguiremos alcançar toda a verdade contida na interpelação híper lúcida do poeta e diplomata brasileiro Guimarães Rosa: «Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo»? Aplica-se na perfeição a muitos dos que subiram até ao Calvário sem nada entender, naquela Sexta-feira tornada santa por um dos Réus. Talvez os parias, especializados em humilhações, calhem ser dos primeiros a conseguir vislumbrar algum sentido na humilhação suprema de uma morte na cruz. Aquela teve o especial dom de ser aceite e vivida por amor. Apenas por amor, numa medida infinita, que é a medida de Deus. Esse amor, que costuma inspirar uma paz expectante perpassa na magnífica tela de Domingos Sequeira «Descida da Cruz», recentemente comprada pela Fundação privada Livraria Lello, que aceitou emprestá-la ao Estado português para ficar (temporariamente) exposta em museus nacionais: 

«Descida da Cruz» (1827) - do quarteto de telas sacras executadas por Domingos Sequeira (1768-1837), em Roma.  Súmula biográfica do pintor considerado a mais talentoso da sua geração:  de ascendência pobre, foi educado na Casa Pia, onde frequentou o curso de Desenho e Figura. Seguiu para Roma com uma bolsa de estudo concedida por D. Maria l, onde cursou pintura com Antonio Cavallucci. De volta a Lisboa, foi nomeado pintor da corte pelo futuro rei D. João VI, ficando corresponsável pela pintura do Palácio da Ajuda e professor de Desenho e Pintura da Família Real. Durante as invasões napoleónicas, tornou-se amigo de oficiais franceses, como o Conde de Forbin, o que lhe valeu a encomenda da famosa tela de Junot a proteger Lisboa (1808). Tais amizades levaram-no a ser alvo de condenações posteriores, de que se reabilitou a custo. Viveu os últimos anos em Roma, dedicando-se à pintura sacra. [dados no site do Museu Soares dos Reis, onde está a tela de homenagem a Junot]. 

Impressiona as portas da Salvação da humanidade terem sido escancaradas pelo mais humilhado dos homens. Como observava lapidarmente Paulo de Tarso sobre aquela insólita escolha, que não cabe nos critérios humanos: é «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ainda hoje se mantém repugnante para muitos, misteriosa para todos, mas incontornável e salvífica para quem se deixe tocar pelo Crucificado.  

Santa Páscoa, sob o mistério do Amor infinito e inexplicável de Jesus por nós (em grande medida, experimentado pelo pequeno Marcelinho), olhados e amados para lá dos nossos erros, reincidências desengraçadas e injustas… 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_____________
(1) FICHA TÉCNICA

Título original: Valentina 
Título traduzido em Portugal: Valentina - despertando para os sonhos
Realização: Chelo Loureiro 
Argumento: Chelo Loureiro e Lúa Testa
Produzido por: Chelo Loureiro, Luís da Matta Almeida, Brandán de Brano, Mariano Baratech e Noa García
Estúdios: Abano Producions, El Gatoverde, Antaruxa  e Sparkle Animation
Banda Sonora: de Nani Garcia
Duração: 1h10
Ano: 2021 (Dez.)
Países de origem: Espanha e Portugal
Elenco:
Vozes de: Jeanne Metivier (Valentina), Laetitia Casta, Eric Mie
Prémios (em 2022): Melhor Filme Animado pelo CEC Award, vencedor do Prémio Goya na categoria de Animação.

26 março 2024

Da contradição *

 - Eu sou um merda!- Gritara Paulo, sem largar o meu rosto.
- Merda sou eu! - Gritara o Tiago. - Sabe o que que eu sou? 
- Merda sou eu! - Insistira Paulo.
- Sabe o que eu sou? Um fracassado. Pronto.
- Merda sou eu!
- Eu sou um merda fracassado. Sou mais merda que você.
Paulo largara meu rosto e agarrara a cabeça de Tiago.
- Eu sou mais merda do que vocês todos!
- Porquê?
- Porque eu era melhor do que vocês todos. Eu era o melhor de todos! Pra vocês chegarem a merda, não precisou muito. Eu, sim, tive que cair. Eu é que sou mais merda.  

Luís Fernando Veríssimo (in O Clube dos Anjos, pg. 35) 

***

(...) e as igrejas, as lojas, os homens, sendo por toda a parte iguais, não vale a pena partir para ir apenas e em definitivo, sentir a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas».  

Eça de Queiroz (in Correspondência, carta à Condessa de Ficalho, 1885). 

***

Agora ando nisto: pego em frases ou pensamentos aparentemente desligados entre si e tento encontrar-lhes algo que os junte.  Não faço isto como auto-flagelação do tempo que ainda é pascal, mas como treino mental cujo resultado interessa a alguns que me apreciam, a outros que tentam encontrar uma brecha por onde introduzir um lança amavelmente crítica.

Gosto de Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro que é filho de Erico Veríssimo, e de quem li algumas obras, nomeadamente a referida acima. Gosto ainda mais do Eça, de quem li tudo, parece-me. O que têm as citações em comum, para além de serem a criação de dois grandes escritores? A expectativa, que o dicionário refere como esperança fundada em promessas ou probabilidades e o tombo gerado por essa expectativa. Ou, talvez melhor, a contradição, que é uma forma de expectativa (frustrada). A queda decorrente é mais um lugar-comum para enfeitar um blog de criatividade reduzida à 6ªf. Bastava-nos, para isso, a sabedoria popular do quanto mais alto se sobe maior é a queda. 

Paulo é mais merda do que todos, porque era o único que não era merda. Há aqui uma expectativa de sucesso que não se verifica e, nesse sentido, a derrota é maior. Se somos os melhores de todos como nos podemos tornar no mais merdoso de todos? É a expectativa - a contradição. Eça sente e melancolia que inspiram as multidões estranhas. Numa turba não é suposto encontrar-se a melancolia, porque há movimento, agitação, braços que nos tocam, rostos que nos fitam, movimentos que nos impedem de ficar quietos e de sentir a felicidade de estarmos tristes. Há uma expectativa de elevação do contentamento, não a possibilidade de nos sentirmos abatidos por uma multidão estranha. É a queda  - a contradição.  

A contradição faz tudo por nós: tem uma dimensão pedagógica, pois põe Paulo no sítio onde ele deve estar, que é no lugar do mais merdoso onde ele nunca se veria; tem uma dimensão de encanto, que nos permite sentirmo-nos melancólicos onde deveria haver lugar para o ruído e a alegria. Tem, por fim, uma dimensão de certeza surpreendente: toda a pessoa extrovertida precisa da solidão e toda a pessoa introvertida ficaria louca aqui, na Cartuxa (Padre Isidoro, in O Segredo da Cartuxa).  

JdB 

* publicado originalmente a 8 de Abril de 2016

25 março 2024

Textos dos dias que correm

 

A Tristeza dos Portugueses

Porque é que os portugueses são tristes? Porque estão perto da verdade. Quem tiver lido alguns livros, deixados por pessoas inteligentes desde o princípio da escrita, sabe que a vida é sempre triste. O homem vive muito sujeito. Está sujeito ao seu tempo, à sua condição e ao seu meio de uma maneira tal que quase nada fica para ele poder fazer como quer. Para se afirmar, como agora se diz, tão mal.
Sobre nós mandam tanto a saúde e o dinheiro que temos, o sítio onde nascemos, o sangue que herdámos, os hábitos que aprendemos, a raça, a idade que temos, o feitio, a disposição, a cara e o corpo com que nascemos, as verdades que achamos; mandam tanto em nós estas coisas que nos dão que ficamos com pouco mais do que a vontade. A vontade e um coração acordado e estúpido, que pede como se tudo pudéssemos. Um coração cego e estúpido, que não vê que não podemos quase nada.
Aí está a razão da nossa tristeza permanente. Cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus. E na diferença entre aquilo que sentimos e aquilo que acontece, entre o que pede o coração e não pode a vida, que muito cedo encontramos o hábito da tristeza. Habituamo-nos a amar sem nos sentirmos amados e a esse sentimento, cortado por surpresas curtas, passamos a chamar amor. E com verdade. No mundo das ausências, onde a tristeza vem de sabermos muito bem o que nos falta, a nós e àqueles que nos rodeiam, a bondade, que nos torna vulneráveis aos sofrimentos daqueles que nos acompanham e nos faz sofrer duas vezes mais do que se estivéssemos sozinhos, é o preço que pagamos por não sermos amargos. É graças à bondade que estamos tristes acompanhados. Há uma última doçura em sermos tristes num mundo triste. Igual a nós.

Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'

24 março 2024

Domingo de Ramos

 LEITURA I – Isaías 50, 4-7

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio,
e, por isso, não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.

21 março 2024

"Que farei eu com esta espada?"

Fernanda conhecera Alberto e tinha-se apaixonado por tudo: por um cabelo negro despenteado, por uns olhos castanhos em perpétuo movimento, por umas mãos marotas e, não menos importante, por uma cultura geral errática. Na verdade, Alberto, o homem formado em estudos comparatistas, não se lembrava de quem tinha sido o primeiro presidente da república portuguesa, não fazia ideia de quando tinha começado o Verão quente ou o que era a maioria silenciosa, mas sabia, de cor, estrofes inteiras de Os Lusíadas, parágrafos completos de Os Maias e poesias infindas de Fernando Pessoa. Era ainda detentor de outra informação inútil, tal como o número dos sapatos de Cesário Verde ou a alcunha por que era conhecido um tio de Cecília Meireles. 

O início da convivência foi fácil - e entusiasmante. Fernanda falava em Alexandre Herculano e Alberto, de olhos em alvo, gemia: Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, des­fechar do céu nas profundezas do nada? Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?

Noutra altura Fernanda, atenta à saúde de Alberto diria: querido, tens os olhos inchados... E Alberto olharia para ela, sorrindo: os meus olhos são uns olhos / e é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros com outros olhos / não veem escolhos nenhuns... Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?

À medida que o tempo decorria Fernanda começou a cansar-se. Falava numa porta empenada e Alberto declamava Herberto Hélder, referia-se a uma camisola verde e Alberto cantava Pedro Homem de Mello. Imaginou se ele teria uma resposta caso ela mencionasse fezes moldáveis ou urinas carregadas. Alberto era um manancial de erudição - e tornou-se um maçador. 

Um dia Fernanda chegou a casa e foi encontrar Alberto a fazer arrumações na cozinha: tachos, panelas, frigideiras, varinhas mágicas, cataplanas. Sentou-se e disse-lhe: entrou hoje um estagiário novo para o serviço, que diz que fez o curso contigo. David Espada diz-te alguma coisa? Alberto olhou para ela e, agitando uma batedeira, citou em voz grave: Todo começo é involuntário. / Deus é o agente, / O herói a si assiste, vário / E inconsciente. / À espada em tuas mãos achada / Teu olhar desce. / «Que farei eu com esta espada?» A batedeira agitou-se no ar e, antes que o culto errático pudesse citar o último verso Ergueste-a, e fez-se., já Fernanda se erguia, de mãos na cabeça. O que fazes tu com essa espada? Experimenta bater claras em castelo, sempre tem alguma utilidade...

JdB 

20 março 2024

O Fado, canção de vencidos *

 Orfãzita


Ficara triste a orfãzita
Triste sete anos de vida
Tão airosa e tão bonita
Toda de luto vestida

Mas disse-lhe um dia o pai
Vives aqui tão sózinha
E o teu paizinho vai
Dar-te uma outra mãezinha

Outra mãe não pode ser
Nós temos uma só mãe
Morreu e se outra vier
Eu quero morrer também

Um dia, a outra chegou
Toda a gente em festa linda
Só a pequena chorou
Sózinha, mais orfã ainda

E triste, devagarinho
Sem dizer nada a ninguém
Foi procurar um cantinho
Na sepultura da mãe

Letra de Francisco Radamanto

***

Paizinho (ou Não batas na mãezinha)

Certa noite desditosa
No meu lar abençoado
Esta cena se passou;
Zanguei-me com minha esposa
E no momento irado
Bati-lhe, e ela chorou

Nesse momento, e por fim
Depois de tudo acabar
Entre lágrimas e ais
Alguém se abraçou a mim
E me pediu, a chorar
Paizinho não batas mais

Tive tanta piedade
Quando o ouvi dizer também
Olha que se ouve na rua
Paizinho, por caridade
Não batas na minha mãe
Tem pena, recorda a tua

Minha mãe, tanto me encanta
Foi ela que me criou /
Diz chorando, a criancinha
Não batas naquela santa
Que tantas vezes tirou
Da boca dela p´ra minha

Dôr igual nunca senti
Quando vi na criancinha
Tão nobre sentir aquele
Com mil beijos prometi
Não bater mais na mãezinha
Chorando abraçado a ele

Letra de António Fonseca

* publicado originalmente a 13 de Maio de 2016

19 março 2024

Nuno Júdice (1949 - 2024)

Se quiseres fazer azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice 

18 março 2024

Do quotidiano *

 Formava-se a primeira comunidade de seres humanos na Terra. Só algum tempo depois, já esta comunidade dominava o vocabulário, a construção das frases e a técnica do neologismo, é que surgiu a palavra quotidiano. Até então as actividades eram ocasionais, avulsas, impulsivas: a caça, o cumprimento das necessidades fisiológicas ou a satisfação das pulsões sexuais, a atenção ao céu como lugar geométrico de todos os mistérios. Só algum tempo depois, repete-se, é que o avulso se tornou em quotidiano, e se definiram momentos certos e regulares para as coisas. 


Há actividades quotidianas que nos acompanham desde o homem das cavernas, ou desde os homens que começaram por dar sons identificadores às coisas, sons esses que redundaram em palavras que, alinhadas, formaram um todo inteligível que permitiu a comunicação, a troca comercial, o primórdio do afecto. Com o tempo, e com aquilo que pensamos ser a evolução da espécie, o quotidiano foi-se alterando: já não caçamos, mas mantemos o desejo sexual; temos mais hábitos de higiene, mas o céu pode ser apenas, e só, a folha de papel onde plasmamos mistérios: projecções matemáticas, tendências probabilísticas, caracterização das núvens.

***

A tecnologia relativamente barata e ao alcance de um dedo gerou milhões infindos de fotografias nos últimos 20 ou 30 anos. Fotografaram-se as crianças na praia, no banho, na primeira festa, no primeiro jogo de futebol; fotografou-se a namorada, o primo, o almoço de sardinhas assadas numa mesa gordurosa, o desafio do Sporting, a festa de Carnaval, ou ainda Chicago, esse espectáculo de amor e traição que alguns colégios fantasiaram pelo Natal; fotografou-se uma fralda cheia de cocó que se mandou à mãe de férias, a boca suja da primeira sopa de legumes, a viagem de comboio pela Europa com aromas de suor, má comida e desejos de jovem adulto; fotografou-se o grupo de amigos bêbedos, as amigas com ar provocante, as roupas práticas e ligeiras que mataram uma certa elegância feminina. Por último, cada um fotografou-se a si próprio: num grupo a rir, mascarado de fantasia, com adornos de photoshop, em frente de uma cascata tropical, de uma igreja rococó ou de um prato pejado de calorias e triglicéridos. Tudo se fotografou, ninguém deixou de ser fotografado. Milhões e milhões de fotografias sem direito ao esquecimento a circular no éter, a revelar um quotidiano moderno, semi-líquido, volátil, prático, existente.      

Por motivos que não vêm ao caso, andei de roda de fotografias relativamente antigas, com 50 ou 60 anos, talvez - muitas antes ainda de eu existir. São de uma época em que a tecnologia se revestia de uma máquina cara, usada em momentos específicos, porque o resto não interessava ser fotografado - havia o custo da fotografia, mas havia, também, uma certa sensação resguardada das coisas.

Imaginemos que o tempo passado só poderia ser decifrado por meio de escritos e de imagens da época e que, munido desses artefactos, decifrávamos um estilo de vida. Olho para aquelas fotografias que fui retirando avulsas de uma caixa e o que encontro? Elegância, cuidado, pouco improviso; mas também encontro uma certa gravitas, uma adultez precoce face aos nossos tempos. Não são fotografias do quotidiano, mas fotografias de festas, de jantares, de comemorações, de encontros. São fotografias que permitem recordar uma certa estética, mais do que uma certa realidade.  

Entre o quotidiano do homem das cavernas e o quotidiano do século XX a diferença está, essencialmente, no pudor. Mantêm-se os desejos, as pulsões, as necessidades de sustento, o céu como interrogação, o projecto de amor. Mudou a forma e, nalguns casos, o espaço desse mesmo quotidiano. O que mudou para o século XXI? A tecnologia que permite revelar tudo, a vontade humana que pretende mostrar tudo. As fotografias que eu vi não eliminavam a existência do quotidiano - o bebé de boca suja, o cocó na fralda, a sardinhada gordurosa, o desejo carnal, a informalidade de uma noite mais excessiva. As fotografias que eu vi revelavam, acima de tudo, a importância das coisas, não a existência das coisas.  

JdB  

* publicado originalmente a 4 de Dezembro de 2017

17 março 2024

V Domingo do tempo da Quaresma

 EVANGELHO – João 12, 20-33

Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
Veio então uma voz do céu que dizia:
«Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O».
A multidão que estava presente e ouvira
dizia ter sido um trovão.
Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou».
Disse Jesus:
«Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir;
foi por vossa causa.
Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado.
Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo.
E quando Eu for elevado da terra,
atrairei todos a Mim».
Falava deste modo,
para indicar de que morte ia morrer.

14 março 2024

Poemas dos dias que correm

Mosteiro da Batalha, Fevereiro de 2024

Tenho uma grande constipação,

Tenho uma grande constipação,

E toda a gente sabe como as grandes constipações

Alteram todo o sistema do universo,

Zangam-nos contra a vida,

E fazem espirrar até à metafísica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.

Dói-me a cabeça indistintamente.

Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.

O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!

As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.

Não estarei bem se não me deitar na cama.

Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!

Preciso de verdade e da aspirina.

14-3-1931

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 48.

13 março 2024

Vai um gin do Peter’s ?

EDUCAR COM E PELA ARTE

Uma reflexão magnífica, partilhada por mão amiga, interpela-nos sobre o papel que a arte deveria ter no currículo escolar, sendo quase omissa. Com a autoridade de quem está associado a colégios de renome, desde há vários séculos, saberá avaliar como poucos o real impacto destas interrogações e recomendações.  

No argumentário apresentado, a arte surge como meio para se atingir um conjunto amplo de objectivos pedagógicos, em geral, de natureza mais subtil e profunda do que a transmissão pura e dura de novos conhecimentos.  

Para vários dos objectivos visados poder-se-iam acrescentar outros métodos complementares como, por exemplo, uma maior interacção com a natureza. É eloquente a tradição (hoje, em desuso) em países germânicos e nórdicos de incumbir crianças de tenra idade do cultivo de plantas ou do cuidado de animais domésticos. Tratava-se de uma tarefa responsabilizante e não de um hobby ligeiro e inconsequente. Aliás, era frequente exigirem-se resultados, havendo relatos autobiográficos sobre os castigos aplicados aos pobres filhos, quando uma planta, por exemplo, não medrava capazmente. Em muitos dos reinos e Estados que vieram a integrar a Alemanha, no século XIX, assim como na Áustria, era comum haver gaiolas de madeira decorativas penduradas nas janelas dos quartos das crianças, bem visíveis da rua, para exibir os pássaros que estavam ao cuidado dos seus pequenos donos. Quem tinha jardins costumava consagrar um canteiro à responsabilidade da miudagem. Ressalvando os exageros, os perfeccionismos ou, pior ainda, os pretextos para a agressividade paterna/materna com os mais novos, percebe-se que persistem inúmeros aspectos onde a educação escolar e familiar tem enorme potencial de enriquecimento. Mas para lá das melhores receitas didácticas, o principal factor-chave de sucesso na educação continuará a residir e depender das pessoas envolvidas – educandos e educadores – como a História confirma com clareza meridiana. 

«A arte é urgente

O que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?

Não sou um entendido de arte, estou longe de o ser. Nem sequer me parece que tenha uma sensibilidade particular ou mais apurada do que a média das pessoas que pisam este mundo. No entanto, considero que a arte é urgente. Tão urgente como a matemática e a engenharia.

Pergunto-me muitas vezes porque razão no nosso sistema educativo não é dada a mesma importância à educação visual, à literatura, à pintura, à música, que é dada à matemática, ao português, à ciência, à fisico-química. Porque razão consideramos a arte como matéria secundária? O que é que isto diz da forma como olhamos para nós próprios, para a vida e para o mundo? Não significará que o nosso olhar se tornou demasiado técnico e que as nossas preocupações se prendem sobretudo com questões de eficácia e de produtividade? É assim queremos viver?

E ainda mais importante: o que é que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?

A atenção e o tempo

A atenção é um bem preciosíssimo, porque é aquilo capaz de nos ancorar ao presente. Nestes tempos que vivemos, a nossa atenção é alvo de uma competição feroz e, geralmente, muito bem sucedida. Vivemos muitas vezes atentos ao que não interessa, que é o mesmo que dizer: vivemos desatentos.

A arte é, sobretudo, atenção. É a capacidade de olhar com intenção, é a capacidade de o olhar se demorar. É uma rebelião contra a voracidade. A arte ensina a atenção.

Mas desaprendemos a demorar-nos. Tornámos a espera numa fraqueza nossa, como se fosse necessariamente algo a combater.

Temos publicado no instagram da @provocasj uns vídeos com umas canções originais e é assustador ver as estatísticas das visualizações: a percentagem de pessoas que chega aos seis segundos de vídeo ronda os 50%. Independentemente da qualidade da canção, aguentar apenas seis segundos é nem sequer dar hipótese! Não me parece nada sustentável viver com um spam de atenção de seis segundos.

A profundidade

Sem tempo não existe profundidade. A profundidade precisa de tempo. Não são precisos mais do que uns segundos para nos darmos conta da vastidão do nosso mundo interior, do nosso avesso, mas são precisos muitos anos (provavelmente a vida toda) para entrarmos nessa vastidão.

A arte é uma porta de entrada na profundidade, é uma linguagem que procura decifrar o avesso das coisas. A arte dá-nos vocabulários e gramáticas para lermos a vastíssima experiência humana que não fica à superfície e para olharmos as coisas a partir da profundidade.

A tensão das perguntas não respondidas

Temos dificuldade em conviver com o inacabamento e com a incerteza. Preferiríamos banir da nossa vida tudo o que é fonte de dúvida. Gostaríamos de poder controlar a existência e ter as respostas certas de antemão, sem corrermos o risco de falhar. Inevitavelmente vivemos na tensão das perguntas não respondidas e estas perguntas não serão respondidas da mesma forma que se resolve uma conta matemática.

A arte não tem medo de habitar esta tensão. Não tem a pretensão de resolver a vida de uma forma simples e mágica, mas cria espaço para que a incerteza e a dúvida sejam acolhidas como companheiras de caminho. A arte sabe ver a beleza da imperfeição das coisas e das perguntas por responder.

O silêncio

A ausência de silêncio é, talvez, das maiores perdas dos tempos recentes. Existe hoje uma incapacidade muito maior para enfrentar o silêncio e o que de bom e de duro o silêncio traz. Tenho medo que vivamos enterrados em analgésicos que contornam o silêncio e a possibilidade de escutar o lado de dentro da vida.

A arte ensina o silêncio, de alguma forma, convoca-o e exige-o. É evidente que posso ir ao Louvre e tirar uma selfie com a Monalisa, mas para ver bem e para ouvir bem é preciso silêncio. De outro modo, eu estarei a tapar a vista do que vejo e a gritar-me ao ouvido do que ouço. Com o seu silêncio, a arte ajuda-me a tirar-me da frente e a escutar verdadeiramente o que me está a ser dito.

A imaginação e a criatividade

Sustento a tese de que, por vivermos inundados de imagens e de estímulos, a nossa imaginação empobreceu-se e a nossa criatividade está entorpecida. Sermos bombardeados continuamente de imagens e ruído ocupa muito espaço. Dá a sensação de que estamos a ser constantemente entretidos e que já não há espaço para o tédio e para o aborrecimento.

Acredito que uma parte da arte nasça do tédio, deste espaço que se abre, que não está ocupado, onde há lugar para o novo. Parece-me que todos precisamos deste espaço desocupado: não é um lugar fácil para os nossos olhos habituados a tanto espetáculo, mas é um lugar importante para não nos deixarmos viver meramente entretidos.

Não acho que a arte seja entretenimento, diria que é muito mais uma provocação, um confronto, um grito, e, por isso, pode ser incómoda e desconcertante. Mas é exatamente isso que nos diz que a vida é demasiado preciosa para a perdermos em passatempos.

A paixão

Lembro-me bem da paixão que sentia quando, há uns anos, conseguia comprar ou me ofereciam um álbum novo ou quando apanhava na rádio alguma música de que gostava verdadeiramente. Estou bastante certo de que nesse tempo, em que não estava tudo simplesmente disponível ou que não tinha constantemente todas as possibilidades à mão, a minha paixão pela música era incomparavelmente maior. De alguma forma, parece-me que ter tudo disponível e garantido, sempre e em todo o lado, tira valor às coisas e rouba-nos a paixão, torna-nos apáticos, no sentido etimológico da palavra: sem paixão.

Esta “tirania das possibilidades” também nos chega aos olhos e sinto que é hoje muito mais difícil maravilhar-nos com alguma coisa. Porque se estamos em overdose de informação e entretenimento, dificilmente nos conseguiremos deter para saborear o que quer que seja. Tornámo-nos extremamente impacientes.

Ao dar-nos atenção, a arte devolve-nos o olhar das crianças que se deixam assombrar por tudo, para quem tudo é novidade. Devolve-nos gosto pelas coisas simples e vulgares que, para os olhares desimpedidos, ganham a carga de milagres. A arte pode-nos sacudir e acordar-nos de uma vida desapaixonada.

Curiosamente, quase tudo aquilo que foi dito acima poderia ter sido dito em relação à fé e às dificuldades que encontramos hoje para a viver e a transmitir. Tenho a impressão de que o problema não está tanto nos conteúdos nem na forma como evangelizamos. Está no passo anterior: no terreno em que queremos semear, que tem pouco espaço para acolher. Sinto que, muitas vezes, a nossa ação deveria situar-se em criar espaço e disponibilidade nos outros (e em nós): abrir à sensibilidade e ao silêncio, cultivar a atenção e a profundidade, ajudar a ver e a escutar, desenvolver a imaginação e a criatividade para acolher o novo.

Portanto, considero que a arte é urgente, não apenas como forma de expressar a fé, mas também como antecâmara, como preparação do terreno, como lugar de fecundidade.»

P. Duarte Rosado, sj
1 Março 2024 – no portal Ponto SJ.PT

Uma experiência cheia de humor e ironia, levada a cabo há década e meia, expos as incongruências de muitos especialistas em arte, suscitando perguntas sobre aquele conceito e o mundo infindo que lá cabe. Tudo começou pelo convite a 12 crianças de 2 e 3 anos para colorirem, com as mãos, uma tela em branco. Cumprida a primeira tarefa, o quadro preenchido a manchas policromáticas foi sorrateiramente pendurado numa parede da célebre feira de arte contemporânea europeia – a ARCO de Madrid. Depois, gravaram-se os comentários estarrecedores (para dizer o menos) do público erudito, entre artistas e galeristas, q.b. reveladores dos equívocos a que a pintura dita abstracta se presta:  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

12 março 2024

Da mentira como inexactidão

Convento de Cristo (Tomar), Fevereiro de 2024

Em Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro (algumas delas) diz Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos: 

Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto.

Talvez não fizesse mal aos políticos com um certo sentido de humor lerem Álvaro de Campos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas a dizerem que são optimistas, que acreditam no próximo, que são pela verdade ou que são muito francos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas falarem sempre bem de si próprias, não porque, em bom rigor, se sintam muito boas, mas porque sentem que ninguém acredita nelas se elas disserem quem? Eu? Eu sou um pessimista... A mim levava-me às urnas alguém que dissesse com transparência: abomino a mentira, porque é uma inexactidão. Não abomina a mentira porque não está certo, mas porque é uma inexactidão. A cereja em cima do bolo seria a invectiva contra as histórias de crianças: não gosto da Cinderela; há ali uma inexactidão que me incomoda.   

JdB

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