31 julho 2008

Outros tempos...


Tinha, como resquícios de outros tempos da fidalguia, uma ementa de um jantar a bordo do iate Amélia desenhada, autografada e dedicada pelo Rei D. Carlos. Estava numa mesa bonita, inglesa, emoldurada ao lado de fotografias do seu pai, da sua mãe, dos seus irmãos, de braço dado ou em alegre convívio com a realeza exilada no Estoril e Cascais. Habituara-se, em nova, a jogos de ténis, lanches em clubes elitistas, noites dançantes ao som de orquestras do brilho e da glória e por baixo de um manto de estrelas que só o poder do dinheiro e do nome podiam garantir. Casara mas não tivera filhos, vindo a separar-se anos mais tarde, numa altura em que o divórcio, não sendo currículum, já não era cadastro.
Encontrara aquele que viria a ser o seu segundo marido há meia dúzia de anos, numa missa de 7º dia, onde se perfilava uma fatia grande do PIB nacional e 80% dos sócios dos clubes lisboetas mais selectos. Antigo empresário, homem do seu nível social, com ele partilhara boleros e valsas inglesas, taças de champanhe e partidas de ténis, na variante pares mistos, onde ele evidenciara um serviço potente e um jogo quase imbatível ao fundo do court. Agora, alquebrado, com problemas nas costas, mantém a sanidade física possível num gingar de desacerto esquelético.
Criaram, ambos, a rotina do paredão matinal: ela de carteira a tiracolo, como se transportasse as jóias que lhe restam numa louis vuitton bem imitada, porque a ladroagem na vila está por demais. Ele no seu desacerto constante, ombro para cá e para lá, braço descompassado da perna oposta, uma coluna desesperada a aguentar partes que parecem querer soltar-se.
O "filme", infelizmente, está desbotado - se não de miséria, pelo menos de desilusão. Ele joga todas as noites, tentando simular, ao poker, o bluff que não conseguiu nas negociações com os sindicatos. Perde mais do que ganha, porque a trinca não entra, a sequência máxima é muito difícil, o full hand está no domínio das hipóteses irreais. Vai buscá-la todos os dias de carro a Atibá, onde o elemento final de uma família que privou com condes e marqueses e soletrou nomes difíceis de pronunciar (porque semi-estrangeiros com letras dobradas), é dama de companhia de uma idosa, com momentos cada vez mais improváveis de lucidez e noites agitadas que arruínam os desejos de descanso nocturno. Por volta das quatro da manhã, com uma pontualidade que enerva, há um encontro inesperado na mente da anciã acamada: o fulgor e a confusão, a memória e o olvido. Nunca se saberá quem vence a contenda que se verbaliza numa monólogo a quatro frases:
- Conheci muito bem a sua avozinha, devia eu ter uns doze ou treze anos. Cabia-me lavar as casas de banho todas - e olhe que eram muitas. Acho que a minha fralda está suja. Importa-se de a mudar?
Cruzo-me com eles todos os dias, conheço-lhes a história como ninguém. Ele traz no olhar o encavanço das cinco da manhã que o atirou, falido, para um sofá e uma água fresca sem gás. Ela traz a carteira a tiracolo, bem junta ao peito, porque o malandrice está como nunca se viu.

Contagem decrescente - faltam 8 dias




30 julho 2008

Swinging Bach Live Concert





Em Portugal, qualquer artista do musicól (é assim que se escreve, com o novo acordo ortográfico?) põe os espectadores a bater palmas a compasso - seja para a mula da cooperativa, para o povo que lavas no rio ou para o cheiro do bacalhau. No fundo, no fundo, o nosso grande desejo é bater palmas, como quem sente nisso o verdadeiro abrilhantar da festa.
Em Leipzig - povo diferente, hábitos diferentes - o artista põe as pessoas a cantar a Avé Maria de Gounod, enquanto ele "trauteia" o prelúdio de Bach.
Nós por cá é mais bolos...

Até lá é isto...


- Tem ido ao meu blogue?
- Sim, todos os dias.
- E então, o que acha?
- Em tudo se vislumbra uma nota de tristeza…
Foi este o curto diálogo que tive, no passado Domingo, com alguém que me é próximo. Uma hora depois repetia a segunda pergunta da conversa a duas ou três amizades que conhecem relativamente bem a pessoa que sou e a minha circunstância. Recebi um conjunto de respostas que se enquadram na categoria das que não oferecem margem para dúvidas:
- Talvez, talvez. Pois, não sei. Um bocadinho, se calhar. Agora que fala nisso. Não me tinha ocorrido. Deixe-me pensar. Não sei bem o que lhe diga. Olhe…
Talvez o blogue esteja mesmo triste, com salpicos, aqui e ali, de uma alegria contida. Posso dizer-vos, com toda a franqueza, que aquilo que se pode lobrigar como uma nota de infelicidade está no domínio do não intencional, não se enquadrando, ainda, na categoria do não desejável. Sou visitante da blogosfera há muito pouco tempo. Entre os que peroram sobre os silêncios de Manuela Ferreira Leite e o desempenho do Ministro da Agricultura e os que revelam os seus estados de alma, as suas vontades e desejos – ou mesmo as suas neurastenias – prefiro estes últimos. Entre a informação opinante e a alma desnuda não sinto o embaraço da escolha.
Nunca quis ser juiz e observo os que o são com um olhar misto: de irritação por uma sobranceria eventualmente pontual; de terror pelo facto das suas decisões poderem afectar, tão directamente, a vida de alguns; por último, de pena, por sentir que baila, nas suas mentes, o fantasma da dúvida ou a sombra da compaixão.
Se a vida fosse asséptica e perfeita, juízes e réus dormiriam a mesma qualidade de sono, seriam afectados pela mesma insónia que caracteriza os incomodados, e roncariam a mansidão que identifica os tranquilos de consciência. Adivinho ambos os extremos da cadeia da justiça vítimas de uma espertina maldosa, com os olhos esgazeados para um tecto que não vêem enquanto o relógio avança os minutos com um vagar de corredor da morte. Uns terão dentro de si a dúvida angustiante sobre a justiça da decisão, sobre a sua relativa irreversibilidade, sobre a data que se aproxima para a execução de uma pena. Os réus poderão questionar-se sobre a dimensão do castigo e a sua proporcionalidade ao crime cometido e lamentarão, quiçá, a incapacidade que tiveram de fugir ao comportamento desviante.
Alguém escrevia, como subtítulo ao seu espaço internético, que a vida é desenhada sem borracha. É verdade, no sentido, talvez, de não podermos apagar o nosso passado, calcetado de erros e acertos. Eu contribuo para esta visão de casa havaneza, atirando para o fundo da gaveta uma caneta de tinta permanente que mão amorosa me ofereceu. É a minha metáfora pessoal para afirmar que nada é, também, definitivo. Nem o que nos apraz, nem o que nos contrista. A lua e as suas fases reflectem isto mesmo, ao não oferecer a esperança ininterrupta do quarto crescente nem impor a desgraça constante do que é minguante.
- Em tudo se vislumbra uma nota de tristeza…
Olho para a vida dos juízes e dos réus (pensando que se confundem, por vezes, uns e outros, não se sabendo exactamente quem é quem). para a borracha e para a caneta que não fazem parte do kit que nos oferecem para a vida e penso que está tudo certo, está tudo como pode ser – sei lá se está como devia ser.
Partir é morrer um pouco, e até a contagem decrescente coincidir com o zero, que é o nada do inexistente, é tempo de abalada. Toda a viagem tem como prelúdio uma despedida que se vai fazendo ao ritmo do que nos manda o impulso ou a decisão. Negar o adeus a quem quer que seja é negar a natureza das coisas. Quando o olhar estiver para lá do horizonte, abrir-se-á uma nova frente na vida, feita daquilo que já foi, daquilo que é, e daquilo que está para vir.
Até lá é isto, para os poucos que me vão lendo.

Adeus, até ao meu regresso.



28 julho 2008

Pode falar-se em perfeição?


A Ronda da Noite, de Rembrandt (1642)

Da incerteza das nossas vidas


Há alguns anos, no contexto de uma reunião profissional, uma colega, jovem de idade, afirmava com um ar categórico - ainda que não pretendesse "esmagar" ninguém:
- a mim tudo me corre bem. Mas eu sei que faço as coisas acontecerem.
A frase - que não era mais do que a verbalização de um pensamento - ficou-me no ouvido durante muito tempo, permanecendo ainda. Porque a guardo? Porque ela é o lugar de encontro de muitas coisas: da ingenuidade, da sorte, do optimismo, do desconhecimento da vida, de uma atitude perante o mundo em redor. Já naquela altura, por razões pessoais, eu não poderia proferir aquela expressão. Olhei para a minha colega com um misto de inveja e de paternalismo.
Na realidade, tempos há em que nos sentimos donos do nosso destino, obreiros únicos da nossa estrada, confiantes num positivismo que derruba obstáculos, vence crises, elimina dificuldades. Outros há (e surgem pela calada da noite em que se transforma o nosso sossego) em que tudo se desfaz num esboroar de complicações invencíveis. No espaço de um instante há um desastre com um filho, uma análise ao sangue ligeiramente desviada, uma maleita que reaparece inesperadamente anos depois. Nessa altura percebemos que dominamos pouco, comandamos pouco, e que o nosso optimismo e confiança no futuro não são suficientes para vencer o acaso, o inesperado, a traição.
Estou convencido, por isso, que hoje a minha colega diria:
- felizmente a mim tudo me tem corrido bem. Sou optimista, tenho valor - e sorte também.
No intervalo de tempo de semana e meia, duas pessoas que me são próximas viram o sossego possível da suas vidas ameaçado pela sombra de um potencial problema de saúde. Ambas vencerão o que há para vencer, porque este desafio é apenas mais um na sua caminhada. Atento nelas, como atento em mim próprio, e vejo que há um fio de cabelo que separa o sucesso do falhanço, o sossego do sobressalto, o riso do choro, um olhar vivo e alegre de um aperto no peito.
Boa semana para os que me lêem, em particular para as duas amizades que se sobressaltaram nestes últimos dias.

Palavras de que não gosto...


Há palavras (e palavras apenas, não o conceito) de que não gosto.
Porque fui educado de determinada forma, não gosto de vermelho, virilhas, hemorróidas, lindo, sanita.
Porque vivi determinada época política, não gosto de solidariedade, jovens, reivindicações, gente bem.
Porque acho um brasileirismo, não gosto de eu amo aplicado a gatos, flores ou pudin flan, nem gosto de expressões como linda de morrer ou amo de paixão.
Porque a vida me ensinou, custa-me dizer palavras / expressões como nunca mais, sempre, não tenho uma dúvida, tenho a certeza.

27 julho 2008

"Deus não é senão Amor"

Hoje é Domingo, e não esqueço a minha condição de católico. Há umas semanas, ao falar para um grupo de jovens prestes a casar, alguém me perguntava se eu, face a acontecimentos que ensombraram a minha vida nos últimos sete anos, ainda conseguia acreditar em Deus - e sobretudo num Deus bom. Achei estranho que gente nova, com estudos, informação e uma educação moderna ainda cresse numa entidade que está por detrás da morte de crianças, desempregos ou separações conjugais. Como se não fossemos mais do que marionetas comandadas pelo Alto. Ou como pudéssemos acreditar numa força superior (não só no sentido de reconhecer a existência, mas no sentido, também, de querer seguir) que destina um tsunami, um terramoto, secas ou cheias, com a consequente perda de milhares de vidas humanas. Expliquei o que sabia, como sabia. Para os que me lêem, fica um texto elucidativo e simples - mas que revela uma Fé inabalável. Bom Domingo para todos.

Temos de compreender isto: “Deus não é senão amor”. Há muito tempo que sabemos que Deus é amor. Mas talvez não estejamos convencidos de que Ele não seja senão amor. (…) Se Deus não é senão amor, não devemos dizer que Deus é omnipotente. Se só é amor, então não é outra coisa, não é mais nada. Ou então não digamos que Deus não é senão amor; digamos que é omnipotente e que é também amor, que também nos ama. Repito este ponto com a máxima insistência. Devemos ser inflexíveis em nunca, mas nunca, admitirmos em Deus outra coisa que não seja o amor. Sendo assim, Ele não é omnipotente; de momento, ponhamos de parte as consequências. Deus é grande? Não, não e não! Ele não é senão amor. Deus é omnipotente? Não, não e não. Ele não é senão amor. Temos de passar, sem nos deixarmos abalar, por esta fase de negação radical. Deus não é senão amor. É preciso compreender o âmago desta expressão ‘não senão’. Porque tudo está contido neste ‘não senão’.

(Viver o Evangelho, O último retiro do P. François Varillon, S.J., Editorial A.O. Braga 1995)

26 julho 2008

Abraços grátis


Nunca fui um homem muito caloroso fisicamente, nem sequer muito táctil. Irrita-me a proximidade corporal que os portugueses insistem em manter com o parceiro da frente numa qualquer bicha (ainda se pode dizer, com a CPLP reunida em Portugal?). Aprecio aquela distância mínima, talvez arrogante e pouco solidária, que os ingleses definem na aproximação a um balcão ou na passagem de uma fronteira. Embirro com pessoas que me vão tocando (espetando um dedo num braço) à medida que contam anedotas - normalmente longas e de graça duvidosa. Fujo desvairadamente de quem, numa conversa informal, interpreta o meu passo atrás, não como a procura de um afastamento mínimo para que os hálitos se dissolvam, mas com um convite para se aproximar ainda mais.

Há cerca de ano e meio passei por Bilbao para conhecer o Guggenheim. Quando dei por mim, estava a aproveitar o abraço que alguém disponibilizava. Não eram rebajas, era grátis. Ofereci, pois, o meu amplexo a uma rapariga basca, não me passando pela cabeça que pudesse ser uma suicida com uma cintura fina repleta de bombas.

Soube-me bem, digo-lhes. Aqueles três segundos deram-me a sensação agradável de uma manifestação afectiva altruísta, sem consequências funestas para a saúde, com um ligeiríssimo aumentar do batimento cardíaco. Senti-me a abraçar o próximo desconhecido, o que era quase inédito. Poderá argumentar, quem me lê, que esse entusiasmo se deveu ao facto de ser uma rapariga limpa, nova, esteticamente apetecível. Abraçar-me-ia a um desdentado com um colarinho manchado de gordura e uma gaforina a revelar caspa? Talvez não, faz parte daquela selectividade mínima que nunca nos larga.

Bom fim de semana. Abracem grátis, sem desejo de contrapartida, os que vos estão próximos. Antes que a ASAE proíba.

Contagem decrescente - faltam 9 dias


25 julho 2008

Milongas inolvidables



Presumindo que haja quem não sabe o que são milongas nem como se dançam... O filme não tem grande qualidade, mas percebe-se o suficiente.

Caso Maddie - entre o horror e o horror, o que escolhemos?


Muito se disse já sobre o caso Maddie. Pelo livro agora lançado e pela entrevista de ontem à noite no Canal 1, muito estará ainda por dizer. Eu, confesso, não acrescentarei mais nada, a não ser o desejo sincero de que a criança tenha sido raptada. Não porque a morte seja infinitamente pior que tal sorte, mas pela forma como olho para os pais. Se se provar a tese de que Maddie morreu devido a um qualquer acidente, e que estes ocultaram o cadáver, estamos perante o horror. Não de dois adultos que provocaram involuntariamente a morte de uma filha, mas de dois seres humanos que, contra tudo o que seria decente, saudável, normal, plausível, aceitável, desenham os contornos de uma mentira infame, preenchem-na, retocam-na e persistem nela, correndo a Europa e os jornais, rezando em Fátima, beijando o anel do Papa e aceitando a sua bênção, angariando fundos e leis para uma causa que nos toca a todos, pais ou não de crianças pequenas.

Por tudo isso - porque nada me move contra o investigador Gonçalo Amaral - espero que a tese da morte e ocultação de cadáver não se prove. Se isso acontecesse, e isto pode parecer um lugar-comum, uma parte da minha crença nos Homens morreria também.

24 julho 2008

Contagem decrescente - faltam 11 dias

A filha do tenente francês


Era atleta especializada nos 20km marcha, fascinada pelo gingar do corpo, pela regra obrigatória de um pé sempre assente no chão, pelo olhar - que alguns diriam quase esgazeado - com que se vislumbrava a meta. Herdara do pai, militar na Legião Francesa, o gosto pela disciplina, pelo espírito de sacrifício, por aquelas três palavras - Legio Patria Nostra - que o comoviam como mais nada.
Um dia, ao 18º quilómetro, num ritmo seguro e de campeã, assentou mal o pé e deu um grito de dor, provocado por um ligamento que se estirava numa rotura sem retorno e por uma alma premonitória que lhe anunciava o fim da carreira. Tudo se consumou ao quarto dia, quando lhe disseram que podia guardar o equipamento, se isso não a corroesse de saudades. Falaram-lhe, também, de um possível coxear em permanência, resultado da gravidade da situação e da ausência de tratamentos modernos.
Foi então que conheceu um português, fisioterapeuta, com um coração de ouro e umas mãos de escolhido e que, numa persistência que envergonharia qualquer atleta de alta competição, lhe recuperou o pé, eliminou o coxear, ensinou a virtude do toque em zonas para lá do tornozelo.
Cruzei-me com ela hoje no paredão, como já me tinha cruzado ontem, há dois dias, na semana passada, no mês de Junho. Posso garantir que o ritmo está cada vez melhor, o terço que percorre com as mãos agita-se mais, o mexer dos lábios vai num frenesim crescente. Apostaria que as suas orações acabam ao quilómetro treze, quando na 2ª feira acabariam ao oito - sinal de que a velocidade se aproxima do que é possível, considerando a entorse de há 35 anos.
Quando chega a casa encontra o fisioterapeuta a esfregar as mãos - não só de contentamento, mas para as aquecer, porque ela se queixa que um percorrer frio lhe arruina o erotismo.
É a filha do tenente francês, porque aposto que a vida dela é esta. Se eu me cruzo com ela todos os dias, não havia eu de saber?

23 julho 2008

"El tango es un pensamiento triste que se baila"

Quem me conhece sabe do meu gosto por música clássica, por fado, por algum jazz. Quem me conhece melhor sabe da minha "paixão" por tangos, que entendo ser uma forma superior de música. Superior a quê? perguntarão alguns. Superior a nada de especial - apenas superior.
Fica aqui um vídeo delicioso (3'38'', para os que têm uma agenda apertada) mesmo que a delícia se situe no domínio do possidónio ou do lugar comum: o olhar apaixonado ou deslumbrado, a pequena multidão que se aproxima, o homem que tira o chapéu como que à passagem de algo que é maior do que ele, a senhora de touca de bilros, o balcão que pára de aviar bebidas.
Não percam!

Rotinas sempre diferentes

São 6.50h da manhã. Estão 17ºC e o céu ligeiramente nublado - muito ligeiramente. Dou início a mais uma rotina diária - a de caminhar durante cerca de uma hora no paredão do Estoril. O que dantes era ocasional
(apetece-me, está muito calor, há muita gente, estou cansado, bem preciso, que fim de tarde extraordinário, o iPod não tem bateria...)
tornou-se numa saudável obrigação que passa, também por um acordar com despertador.
Ao fim de meia dúzia de dias apercebo-me que as pessoas com que me cruzo são quase sempre as mesmas:
a senhora que encontro aos Domingos na Igreja e que, aqui, reza um terço em passo de marcha;
jovens novas, altas, saudáveis, que aquecem os artelhos antes de se fazerem à corrida;
um casal a rondar os 80, ambos alquebrados, silenciosos, com as articulações desconjuntadas e descompassadas;
cavalheiros idosos, fortes e obesos, de tronco nu num despudor inestético;
atletas amadores, com músculos trabalhados e camisolas que evidenciam participação na corrida de 1997 contra uma injustiça qualquer;
E outros que vou reconhecendo, porque nos cruzamos à mesma hora, nos mesmos locais, com o mesmo ritmo.
O paredão, como tantos outros locais semelhantes, dava, por si só, um livro imaginativo - o que são aquelas vidas, o que pensam, como amam, como se chamam os filhos, o que fazem quando chegarem a casa, qual a sequência com que se lavam e vestem, onde trabalham, o que os torna infelizes, de que riem perdidamente ou de que choram numa convulsão de fazer pena.
A nossa vida é uma sinusóide (ou um interruptor, como diria um humorista). O segredo não é torná-la "lisa", mas sim perceber quando e porquê surge o movimento descendente, o que fazer com ele e como o atenuar. E acreditar, também, que voltaremos para cima. Talvez um dia me sente àquela hora da manhã, e tente desenhar a curva de cada existência.
Amanhã voltarei ao paredão, pelas 6.50h. Verei as mesmas pessoas, terei a tentação de desejar uns bons-dias porque, no fundo, somos todos colegas da mesma rotina. E imaginarei uma artrose que se agravou no casal idoso, umas olheiras na rapariga que corre com pernas de gazela, uma promessa na senhora que já chega ao 3º Mistério antes de passar pela piscina do Tamariz.
Num pensamento que partilhei hoje, continuarei feliz por saber que as nossas vidas não se regem pelas leis da ciência e da técnica, e que o maior encanto pode estar na forma como procuramos uma concavidade inesperada para uma saliência igualmente inesperada.
Adeus, até ao meu regresso.

Contagem decrescente - faltam 12 dias

22 julho 2008

Uma visão ligeira e metafórica da resistência dos materiais


Resiliência - do Latim resilientia, resilire, recusar, voltar atrás.

Capacidade de resistência ao choque de um material, definida e medida pela energia absorvida pela ruptura de uma amostra de secção unitária desse material; energia necessária por unidade de volume para deformar um corpo elástico até ao seu limite de elasticidade.

Se a tensão máxima numa amostra não exceder o limite de elasticidade, a amostra voltará à sua condição inicial quando a carga for removida. Se a carga for repetida, no entanto, um número muito grande de vezes haverá ruptura a uma tensão muito menor do que a resistência à ruptura estática - fenómeno conhecido como fadiga - do Latim fatigare, esgotar, estafar, extenuar.





Dia de Santa Maria Madalena, penitente


A Igreja celebra hoje o dia de Santa Maria Madalena, penitente.

Deixo aqui uma palavra às duas Madalenas que, com lugares diferentes, intensidades diferentes, perenidades diferentes, preencheram e preenchem a minha vida.

(Josefa de Óbidos, 1650, óleo sobre cobre, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra)







Eram cinco da manhã quando acordei com a ronca do nevoeiro.
(Pelo menos pareceu-me que era...)
Durante algum tempo deixei-me embalar por aquele ruído regular e fundo, que alerta os navios para os perigos da pouca visibilidade.
(Conheço quem abomine a ronca porque lhe aumenta as insónias e lhe acrescenta as neuras; eu, pelo contrário, gosto - lembra-me o nevoeiro, o Outono, estação que dizem ser propícia a neurastenias e depressões.)
A ronca continuou, indiferente aos gostos de cada um, e eu sonhei-me num barco
(ou seria sonhei-me um barco?)
atento aos perigos que espreitavam, vigilante da direcção e intensidade do aviso. À minha frente, as mãos firmes na roda do leme, um piloto experimentado dizia-me para onde ir, sem medo e sem dúvida.
- O rumo está traçado, não há que hesitar. É por aqui que temos de ir!
Mas eu vacilava. Afinal havia a ronca, naquela sua regularidade de relógio afinado, como que a dizer-me que sim, que havia esse caminho, mas que espreitavam perigos que poriam em risco a segurança da embarcação.
O piloto e o conhecimento, a ronca e o sinal. Sonhei-me num barco
(ou seria sonhei-me um barco?)
sem saber exactamente que rumo tomar, que opção escolher, que voz ouvir.
Quando, no meu sonho, tomei a decisão, a ronca continuava, enfurecendo alguns, embalando outros - mas alertando sempre para os perigos da pouca visibilidade.

Adeus, até ao meu regresso.




21 julho 2008


Uma fotografia não é só a captação espontânea de um instante, a gravação para a posteridade de uma imagem estudada ou uma lembrança para tempos vindouros. Uma fotografia é, muitas vezes, uma metáfora. E é assim que devemos olhar para algumas - com os olhos de uma metáfora, com o coração de uma metáfora, com a pura inocência de uma metáfora.

Glenn Gould toca Beethoven





São 7 minutos e 16 segundos da maior perfeição, da maior criatividade, da maior elevação. Muitos dirão que não se podem dar ao luxo de perder tanto tempo em frente a um blogue. O segundo andamento do 5º Concerto está no domínio da genialidade, pelo que o conceito "tempo" não é aplicável.

Boa semana para quem me lê

Ainda não eram 7 da manhã e já eu palmilhava o paredão do Estoril com a minha companhia habitual. Estava uma manhã gloriosa - uma ligeiríssima névoa, uma temperatura amena, o sol que, embora já nascido, ainda não iluminava, no entanto, Cascais. Na baía, barcos e mais barcos num repouso de férias, ancorados ao fundo do mar, à espera do tempo certo para se fazerem ao vento, ajeitando velas, caçando cabos, orçando ou arribando. Naquela hora de passeio está mais do que o esticar das pernas, o activar dos músculos, a tentativa de contrariar uma vida por vezes demasiado sedentária e rotineira. Naquele ir e vir, para além da partilha de uma conversa sempre fluída e agradável, areja-se a mente, descobrem-se novos pormenores no caminho, vislumbra-se uma ideia para um texto, para uma acção, espraia-se o olhar para além daquilo que é possível. No meio do temporal em que as nossas vidas por vezes se embrulham, há estes momentos felizes.
Um bom dia e uma boa semana para quem me lê.

Contagem decrescente - faltam 14 dias




20 julho 2008

Porque há músicas intemporais...

A simplicidade


Lembras-te ainda, amor, da simplicidade de alguns gestos?
Nem sempre queríamos dizer: amo-te! Nem sempre conseguíamos responder: eu também!
Mas agarrávamos o silêncio pelo braço e íamos para o banco do jardim, olhar para as mesmas coisas, rir das mesmas coisas, pensar nas mesmas coisas, inventar histórias de ciúme e tragédia para personagens que não conhecíamos.
Os outros abraçavam-se, beijavam-se, ofereciam flores que murchavam cedo e que eram substituídas por outras que voltavam a murchar cedo.
Nós, não. (Será infelizmente?)
Encostávamos o dedo um ao outro e éramos a criação do mundo, ou o ET que brilha num sorriso de marciano. Um toque apenas. Sem palavras bonitas inventadas no momento ou repetidas numa incessante monocordia.
Lembras-te ainda, amor, da simplicidade de alguns gestos?

19 julho 2008

Contagem decrescente - faltam 16 dias


The Dark Side of the Moon ou The Sunny Side of the Street?

Quando, em meados de 2001, me desloquei à Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro – tinha uma ideia muito difusa do verdadeiro impacto da doença nos mais jovens. O meu conhecimento advinha, essencialmente, de informações que recolhera para enfrentar um inimigo que me entrara inesperadamente casa adentro.
Ao longo dos últimos três anos, tive o gosto de colaborar na Associação – como moderador num grupo de pais ou como membro da Direcção. Pude então aperceber-me, com maior rigor, da crueza das estatísticas, da dimensão dos dramas, mas também da alegria das vitórias. Por maior que fosse a minha generosidade, nada compensaria o que recebi das pessoas com quem me cruzei – doentes, voluntários, pais, amigos. No deve-e-haver da minha relação com os outros, a Vida quis ser generosa comigo.
O cancro infantil é uma doença traiçoeira, porque atinge os mais fracos, os mais desprotegidos, aqueles que deveriam ter pela frente um percurso feliz, feito de amor e carinho, de brincadeiras inocentes, de sonhos que se não desfazem. Fernando Pessoa diria que o melhor do mundo são as crianças e a nossa sensibilidade mais elementar não consegue aceitar a injustiça que se abate sobre elas.
Somos o que somos e a nossa circunstância. Apesar das rasteiras da vida, não consigo deixar de pôr as palavras «esperança» e «sucesso» ao lado do logotipo da Acreditar. Apesar dos atropelos do destino, não consigo abdicar desta Fé que me leva a crer em dias melhores, me dá forças redobradas, me orienta o caminho. Apesar dos desânimos momentâneos, obrigo-me a imaginar o dia de todas as vitórias.
Este livro também é dedicado, de uma forma especial, à Acreditar e a todos os que combatem diariamente uma luta sempre desigual, sempre injusta. Aos voluntários, que abdicam da certeza das suas vidas para se oferecerem às incertezas dos outros, nem sempre sabendo que se recebe muito mais do que se dá; às crianças – não só as que evidenciam que o sucesso é possível, mas também aquelas cuja partida deixou visível um rasto de afecto que contamina os corações; é dedicado, por último, aos pais, esses lutadores incansáveis que escondem a tristeza que diminui por trás do sorriso que conforta, que acreditam, não no fim das coisas, mas na vida que se renova todos os dias.

(João de Bragança, 19 de Março de 2005, no prefácio do livro Deus pregou-me uma partida, em co-autoria com Rita Jonet)

18 julho 2008

Poema do dia


Sofro, Lídia, do medo do destino.

A leve pedra que um momento ergue

As lisas rodas do meu carro, aterra

Meu coração.


Tudo quanto me ameace de mudar-me

Para melhor que seja, odeio e fujo.

Deixem-me os deuses minha vida sempre

Sem renovar


Meus dias, mas que um passe e outro passe

Ficando eu sempre quase o mesmo, indo

Para a velhice como um dia entra

No anoitecer.


(Ricardo Reis)



Toda a beleza faz chorar?



O Pronome Possessivo teve a excelente ideia de postar, um dia, a Lacrimosa, do Requiem de Mozart. Fechei os olhos e ouvi o tema pela milionésima vez, invejoso de uma mente que conseguiu criar uma obra tão sublime que me tira da terra e me leva a um outro mundo.
Quanto comentei - quase sob impulso - ocorreu-me um pensamento: tudo o que é verdadeiramente belo, em qualquer forma de arte, tem o seu quê de tristeza. Não consigo encontrar (tanta) beleza na alegria. Talvez encanto, ternura, satisfação. Mas Beleza?
Perante a discórdia de algumas pessoas, meditei sobre o assunto e refiz o raciocínio, do qual não saio: pelo menos na música, tudo o que é verdadeiramente belo é triste.
O vídeo que partilho mostra isto mesmo. Fechem os olhos (até porque a imagem não mexe), oiçam, e digam-me se não tenho razão.

17 julho 2008

Contagem decrescente - faltam 18 dias


Marés Cheias


Ponham-me sonhos a correr nas veias

Deixem-me navegar em fantasia

E as vinte e quatro horas do meu dia

serão sublimes como marés cheias!

Quero palpitante tudo aquilo que toco

Quero o que existe para lá do espelho

E quero tingir de azul e de ouro velho

as cores pardas dum mundo que não foco

Que eu feche os olhos e me leve o vento!

Que cada dia seja o meu primeiro!

Que eu saiba sempre fazer um veleiro

do banco de jardim onde me sento...


(AnaVidal, Seda e Aço, DG Edições)

A vida triste dos palhaços...


Há muito, muito tempo, era eu uma criança (lembram-se desta música?) detestava mascarar-me. Suportava um traje de cóbói (é assim, com o novo acordo?) e pouco mais. Daria, seguramente, a visão de uma criança triste e desenquadrada dos pierrots, dos arlequins, dos polícias, das sevilhanas ou dos astronautas. Se pusesse uma máscara (à força, obviamente) era o retrato vivo do menino que chora, de cujo olho brota uma lágrima com a dimensão de um berlinde.
Vem isto a propósito do que são as máscaras que pomos hoje em dia, no carnaval que vivemos durante grande parte do tempo. Artefactos que usamos com orgulho, desespero, felicidade, vontade imensa de pertencer a um grupo com o qual nos queremos integrar. Nem sempre somos o que somos, mas aquilo que achamos que os outros esperam de nós, ou que dá de nós próprios uma imagem de sucesso. Talvez esquecendo que é a genuidade (não existe a palavra, pois não?), tantas e tantas vezes, que provoca um encanto duradouro no outro.
Ontem jantei com um amigo com quem mantenho uma amizade relativamente recente, mas muito partilhada. Difere de mim em muitas coisas - na forma como quer gerir a sua auspiciosa carreira profissional, no gosto por alguns livros ou discos, na visão que tem sobre a influência do Império Britânico. Ligam-me a ele duas coisas fundamentais (entre outras igualmente importantes): a incondicionalidade da amizade e a desinibição da conversa. Quando falamos, não pomos a máscara de homens que falam de carros, de motos, de mulheres ou de bola. Quando falamos, falamos do que nos move, do que nos emociona (do amor saudavelmente obsessivo que ele nutre pela mulher) ou do que nos diminui.
Não invejo (ainda que respeite) a vida triste dos palhaços - metaforicamente falando. Ninguém conhece quem são os manéis carlos ou os rubens cristianos desta vida - sabemos, isso sim, quem é o palhaço rico e o palhaço pobre, soprarem um trompete ou a sacar arpejos de uma lâmina de serra.
Somos o que somos - e quando queremos ser diferentes, quando queremos ser algo ou alguém só para, supostamente, agradar a este, àquele, ou à sociedade, pomos um engano no rosto que esconde a nossa verdadeira natureza. É a vida triste de um palhaço.

Adeus, até ao meu regresso.



16 julho 2008

Um blogue? Tu?


Pois é...

Durante muito tempo os blogues passaram-me ao lado. Não lhes ligava, não lhes via um encanto por aí além, não criei hábitos de visita. Nem sequer àqueles que eram supostas referências nacionais.

Por via de uma amizade com duas bloguistas, tornei-me bloyeur (palavra com direitos de autor) habitual e ousei comentar alguns posts sob pseudónimo. Criei dois personagens diferentes mas, como não tenho veleidade intelectual de alimentar heterónimos, dei por mim a confundir tudo - e a revelar-me.

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Dia 4 de Agosto sigo para o Zimbabué, onde ficarei cerca de dois meses. Beneficiarei da hospitalidade do actual embaixador, que me dá o gosto de uma amizade com quase 40 anos. O que vais lá fazer? perguntarão alguns, enquanto olham para um Mugabe a quem não confiaríamos uma tartaruga, para um país que parece a ferro e fogo, para um continente onde não se consegue pronunciar a palavra democracia, embora nos pareça que há sempre gente que canta e dança alegremente, num frenesim de inconsciência, miséria e cegueira política.

Vou por um conjunto de motivos, alguns bem prosaicos: Agosto e Setembro são meses em que me poderei dar ao luxo de exercer uma parte da minha actividade profissional a milhares de quilómetros, graças à Internet; por outro lado, conto fazer turismo, conhecer uma parte (e estou certo de que o vou fazer) do fascínio de África; aproveitarei para ler e para escrever. Conto também - passe o cliché do pensamento - olhar para o passado, atentar no presente e pensar no futuro.

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O blogue que agora inicio (e agradeço à Ana Vidal o apoio técnico e estético, sem a qual nada disto teria sido possível) tem como motivo principal uma presunção: a de que alguns amigos gostarão de saber o que faço, com quem e porquê. É uma forma, afinal, de partilhar o meu dia-a-dia, agora que o fascínio do postal ilustrado é um actividade de alfarrabista. O que for colocando até à data da minha partida serve, também, como treino para este actividade que me é, ainda, um pouco hermética.

Como provavelmente a maioria dos blogues, este não tem linha editorial definida, a não ser o que entra naquilo que me apetece partilhar com quem me lê. Está tudo pensado para a minha estadia em Harare, num hectare muito bonito a que ainda podemos chamar solo pátrio. Quando regressar, logo se vê. Gosto do nome de um disco já antigo: hoje há conquilhas, amanhã não sabemos.

Adeus, até ao meu regresso...


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