31 março 2009

História para pintar - I

Magia antiga
esta de guardar segredos
abrindo janelas
e riscando depois,
para lá delas,
tranquilamente,
o nome das cores,
como se cada vazio
pedisse por si,
para o seu silêncio,
uma morte diferente
e um espelho
nos devolvesse depois,
de algures,
o destino que acordámos.

JCN

30 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia da morte de Lord Horatio Nelson.

Há páginas do meu diário que parecem estar sob o efeito de um cone de aspiração. Da última vez que me deitei à escrita foi para falar do Sr. Carlos Santos – talvez mesmo Alferes Carlos Santos - militar que foi garboso, cheio de orgulho e dono de uma voz possante e de uma liderança forte. Agora, semi-esquecido dos seus feitos, confia na Honória para pacificar os fantasmas que povoam a parte presente do seu passado.

Mantenho-me de alguma forma no mesmo registo e falo hoje da Gabriela, uma rapariga muito loira e com uma constituição física invejável, mais atlética do que elegante, e que passou pela Academia Militar durante dois anos. Não terminou o curso, porque foi vítima de um problema físico que se revelou tardiamente. Gabriela mantém alguns tiques da vida castrense - disciplina, sentimento de dever, apego às rotinas e às normas de execução permanente -, encantada de um modo muito pessoal pela visão de um pelotão que marcha síncrono e alinhado.

Num segundo trimestre quente e abafado de um ano recente, Gabriela frequentaria um curso internacional em Brest, França, tendo-se deleitado por um aspirante da Escola Naval Francesa com quem manteve um romance tórrido que durou seis semanas. De tarde vencia-se o inimigo – quem quer que ele fosse – e à noite os dois aliados desenhavam uma entente cordiale. Serge, o gaulês, percorreria, numa voragem quase insana, o espaço nacional representado pelo corpo da cadete Gabriela Resende, natural de Penamacor, com aspirações militares, seios rijos e fortes, e uma marca inigualável no teste de Cooper.

Sem Academia Militar e de regresso a Portugal, esta rapariga vive agora num anseio pela informação de um vaso de guerra na linha do horizonte. Quando alguém a informa desse facto, que a inunda de uma alegria nostálgica, a ex-estudante vai até ao mar e observa o rio, a baía. Vê uma corveta, um navio-escola e lembra-se então de Serge, o seu oficial de marinha, com quem partilhou estratégias, planos de ataque, leitura de cartas, identificação das posições inimigas, noites tórridas de amor todas elas faladas em francês.

No remanso de quarenta dias num quarto de hotel, ambos exploraram o corpo alheio na preparação de uma ofensiva, como se os vales, elevações, obstáculos de cada um não fossem mais do que um jogo de guerra que terminaria numa paz feita de beijos, afagos, movimentos simultâneos. A excepção, em termos de idioma, consistia nas vozes de comando que a cadete Gabriela dava ao seu parceiro e que o deixavam em ponto de desvairo. Era como se a ordem unida se revestisse, subitamente, de um manto erótico, sensual, onde a harmonia dos corpos em movimento único e irrepreensível desse azo aos pensamentos mais libidinosos.

O amante despedira-se dela na última manhã do curso. Gabriela fumava um cigarro na cama, com um lençol azul-claro a tapar uma nudez branca, aqui e ali salpicada de sinais. Uma nesga de seio subia e descia ao compasso de uma respiração suave, cadenciada, cheia de confiança num futuro que se lhe abria apaixonado, fruto de um amor que nascera limpo, transparente, falado em francês. A respiração não se alterou quando o aspirante da École Navale, apertando o último botão de uma farda vincada sem mácula, lhe falou na sua mulher e numa petite jolie fille que o esperavam nos arredores de Marselha. Gabriela apagou o cigarro, fechou os olhos, e eliminou os pensamentos derrotistas com informações factuais: nome, posto, número mecanográfico, objectivo da missão.

Agora, de quando em vez recebe um cliente por quem sente afectos estranhos e contraditórios. Lembra-se do francês, da traição, das vozes de comando que o elevavam aos céus da loucura sexual. Baixinho, agarrada ao seu parceiro daquela noite ou daquele fim de tarde, murmura gritos de saudade e desejo:

- Firme! Em sentido! Não mexe! À vontade!

Depois chora, e geme um lamento:

- Destroçar!

Da carteira, Gabriela Resende, ex-cadete da Academia Militar, com uma marca inigualável no teste de Cooper, retira uma fotografia de Serge, fardado, garboso, com um sorriso gentil numa boca bem desenhada. Por trás, uma citação de Lord Horatio Nelson devolve-lhe a importância da realidade, da não distracção dos objectivos, da importância da resistência:

You must consider every man your enemy who speaks ill of your king; and... you must hate a Frenchman as you hate the devil.

Cumpriu-se mais um dia

MTS

29 março 2009

5º Domingo da Quaresma

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

***

Perder ou ganhar?

De vez em quando, os evangelhos dão-nos algumas frases difíceis de Jesus. Daquelas que, mesmo sem nos perguntar nada, gostaríamos de O aconselhar a ser um bocadinho mais doce, menos dramático. Isto de “quem ama a vida perde-a”, que quer dizer? Então Deus não ama a vida e não gastamos tanto tempo e palavras a dizer como Jesus nos ama? Não “cai” bem uma expressão destas, tão contra-a-corrente das apologias de beleza e gosto de si próprio, dos encantos narcísicos e exaltação do corpo (“se o teu corpo diz que não aguenta mais mostra-lhe como está errado”, é o anúncio de uma bebida energética). Andamos tão desgostados com a vida e até Jesus nos diz para não nos amarmos? É cá um murro no estômago!

Também saí sem palavras do último filme de Clint Eastwood, intitulado “Gran Torino”. Cada vez mais me espanta como o tema da redenção, da descoberta de sentido para a vida num gesto de entrega, emerge na obra deste grande realizador. Não é um filme de pipocas, nem para distrair um bocado. A beleza rude do personagem principal articula-se com os afectos de uma família improvável, e onde a morte ia vencer, surpreende-nos a vida. Sobre a morte e sobre a vida andamos sempre a aprender; por isso, muito cuidado com as “frases feitas”.

“Amar a sua vida” seria ficar fechado como uma semente que se recusasse a romper a casca? Ou fazer de si, das suas coisas e preocupações, o centro do mundo? Confesso que é grande a tentação de exaltar imediatamente o serviço e a dádiva e apontar o dedo a todas as manifestações de egoísmo. Como é feito pelos melhores comentadores. Mas olho e olho-me neste mundo de tantas pessoas mal amadas, com um desejo de felicidade tão alto, pouco reconhecidas por si e pelos outros no dom único de cada uma, que me apetece dizer, nem que seja baixinho e até pareça heresia: “amemo-nos um bocadinho mais, apreciemos o que é simples e belo em cada um, aprendamos a gostar das diferenças e a levantar os olhos do chão. Esta vida não é um ensaio geral, nem um castigo por erros do passado, nem uma prova a superar a todo o custo. É difícil e também injusta, mas está cheia de surpresas e se não a amamos bem, ficamos mais pobres.” Não queria aproveitar-me das palavras de Jesus. Sei que me falam da Páscoa mas continuam a incomodar-me. Não entendo bem o que é perder ou ganhar. Com Jesus é tudo ao contrário! É grande a tentação de ser o seu melhor ou único interprete! Mas só interpreta bem quem ama, quem perde para que outro ganhe, quem diminui para que outro cresça, não é verdade?

Texto do Pe. Vítor Gonçalves tirado daqui.

28 março 2009

Zé-Brasileiro, Português da Sertã, em Amor e Uma Cabana

Passava noites a farejar os passeios de ruas e praças. Percorria os bairros da cidade onde vivia a fina flor, porque sabia que essa gente deitava fora muita coisa boa. Móveis cheios de bicho, como crivos de regador, divãs desengonçados, peças fora de moda, louça esmonada, tapetes desbotados. Em cada ronda nocturna havia sempre novidade. E se o caso fosse de partida definitiva, até cão e gato integravam os desperdícios. Aquela mania não tinha nenhum fim directo. Nem restauros, nem lojas de velharias, nem feira da Ladra, nada. Só o gozo de vaguear de noite e uma valorização exacerbada a cada objecto usado, exactamente por isso: por ter vivido no meio de gente, dentro de casas de família, por ter sido adorado ou odiado, por ter uma história, grande ou pequena, triste ou feliz. No fundo, além de matar a insónia, Zé vingava a sua aposentação naqueles trastes que, de um dia ao outro, perderam utilidade.

Chegara do Brasil. José do Nascimento Alves, emigrante português no Estado de São Paulo, era o legítimo herdeiro do prédio rústico onde nasceu, numa freguesia da Sertã. Único filho de Justino Alves, dono e senhor de três campos sobre o Zêzere e uma casa agora em pronunciada ruína. Não é coisa que se mostre a dôna Neide. Mesmo com tanta terra para cultivar. Neide vai virar uma leoa quando vir a casa. Pobre Justino, vivera em Lisboa a correr para a terra, para hoje ser quase um matagal. Neide, você tem que ver... beleza, minha nega. ‘Cê vai gostar e eu tô ta precisar Neidinha. Zé desbravava silvas em cada telefonema, depenava-se em saudades, preparava a mulher nas entrelinhas. Daqui vejo o Tejo, azul, o céu de Lisboa, mais azul ainda. ‘Cê vai adorar. Como te falei, a roça de meu pai tá meio abandonada, mas vou dar um jeito. Aquilo lá é lindo, também com o rio passando. Aqui é muito calmo. O bairro Neide, chama-se do Alvito, tá na cidade mas é tranquilo demais, num lugar vizinho de bosque. ‘Cê vai ver, ‘cê vai adorar. Ah, Neide, chora não, logo logo tá tudo pronto pra você chegar. É só que tenho de tratar da papelada e isso demora um pouquinho. Tá Zé, mas eu preferia qu'ocê voltásse... Sobre isso a gente conversa depois Neide, agora me deixa tratar e quando for a hora Jerônimo te leva no avião.

As quatro décadas de vida do outro lado do mar timbraram-no logo de diferenças. Por fora, Zé era um parolo lavado e sempre claro. Camisas brancas, calças e casacos creme, coletes riscados, bonés de linho, sapatos abertos. Este José, que pelas costas lhe chamavam “o Brasileiro”, ainda era mais claro na educação: todo vénias, palavras novas, carinhas doces. Que na penumbra o Brasileiro saía do Alvito à caça de quanta porcaria houvesse, largada nos passeios por muito boa gente, é que ninguém diria. Por dentro, Zé não era tão claro assim. O fim da carreira de faz-de-tudo até ser Dono de Loja e a separação já longa da sua velha e boa dôna Neide, uma mulher cilíndrica que há anos aquecia os pés e o caldo do Português, apertavam-lhe o peito, tingiam-lhe a alma e mostravam-lhe uma nova estrada a construir. Zé queria trazer a Neide para este lado e a pior dificuldade era convencê-la a ficar. Neide não queria largar a sua horta nas traseiras, nem o papo com a jararaca da vizinha.

Enquanto driblava esta pedra no sapato, Zé olhava a quinquilharia recolhida na noite. Mexendo na coisa veio um cheiro. E parece que foi desse cheiro que surgiu uma ideia na cabeça do Brasileiro entrincheirado entre o seu país e dôna Neide. E se eu pegasse nisto e levasse tudo para lá... Ah meu Deus, mas como é que eu não pensei nisso antes? Vou botar aquela roça a brilhar, pombas! Vou concertar tudo isto, vou montar a casa mais linda do mundo. Ah Neidinha, santinha do meu coração, me aguarda. No clarear do dia seguinte Zé Alves tirou um bilhete na Estação, apanhou a Rodoviária e chegou a Palhais, a sua aldeia, pelo meio-dia. Procurou o Padre e resolveu a vida. Voltou três semanas depois com a carrinha atascada até cima. Levava tudo e mais ainda. Ficou por lá uns quinze dias, na guarida do vigário que bem conhecera Justino Alves, serralheiro prestigiado da Lisnave. O bom filho à casa torna, começou o padre informando o povo. Ao Zé, tudo correu de feição. Só faltava o calor, a voz, a sopa e o cafoné de dôna Neide.

Trabalhou entusiasmado. Já tinha instruído Jerônimo para mandar dôna Neide prá Metrópole. Jerônimo entrou de marçano na loja e criança que era fez-se como um filho. E quis o tempo que se fizesse sócio-gerente também. Tá tudo marcado Seu Zé. Dôna Neide parte dia 20, chega dia 21 no Aeroporto da Portela, aí em Lisboa. Certo Seu Zé, deixarei ela na porta do avião. Pode ficar descansado. Neidinha suou tudo naquela viagem. Vinha até mais delgada mas assim que viu o seu Português, largou as malas e esqueceu os 80 quilos até ele. Puxa Zé, você tá chupado. Ainda bem que te trouxe uma moqueca bem temperada. Nessa noite os dois comeram de janela e de olhos escancarados. Mais de trinta anos sem um único dia de separação e desde o Carnaval sem se verem. Era já fim de Julho e fazia calor. Que tal Neidinha? Não vai dizer que tá triste... Sabe o que é Zé? Tô com medo do futuro. Qué isso, minha velha?! ‘Cê tá comigo tá com Deus, ué? Agora vem, vem deitar que amanhã tenho um presentão pra você.

E tinha. José do Nascimento Alves, Brasileiro em Portugal, Português no Brasil, herdeiro em Palhais, comerciante em São Paulo, depois das devidas vénias e apresentações no Bairro Económico do Alvito, meteu dôna Neide na carripana e seguiu à Beira Baixa. Fala Zé, o que é que você tá tramando? Se aquieta Neide, quando chegar você vê. O medo persistia. Não vai querer ficar. Quando Zé espetou o dedo a um portão verde-triste, dôna Neide gargalhou. Você botou o meu nome aí? Espectáculo Zé! Foram entrando. Primeiro, uma carreira comprida e ao fundo uma casinha caiada. O português não se calava. Isso aqui é tudo provisório Neide. Com o tempo vamos fazer uma casa de verdade com tudo o que você merece. Já viu quanta terra para cultivar? Até jardim pode ter. A mulher nem o ouvia, esbugalhada que ficou quando o Português abriu a porta e correu a levantar o toldo. Dôna Neide ia tendo um troço. Parecia um quadro. Uma Natureza viva. Metade da casa estava lá fora, debaixo de uma tenda. Nossa Zé! Como você arranjou tudo isso? Tá lindo... Gostou mesmo? Ah, ‘cê me enviou no paraíso, seu safado sem nome... Sabe Neide, na viagem tomei uma decisão. Forçar você a ficar em Portugal não tá certo. E ontem a tua moqueca me deu umas saudades do Brasil... já não sei de que terra sou Neide. Vamos dividir o resto da vida cá e lá? Isso Zé! Mas promete que não vai destruir essa cabana linda que ‘ocê fez pra mim. Tá certo minha flor. Agora vamos ao rio.

DaLheGas

27 março 2009

3 andamentos (allegro vivo; lento; lentíssimo)


amadou et mariam, 'sabali'

--

por ter medo - tanto - das rosas,
por se lembrar doutros tempos, doutras casas,
morria, todos os dias,
de avulsa melancolia

e de outras coisas.

--

o homem da guitarra azul
esperava no espaço dele
por submarinos dourados
à flor da pele.

a guitarra azul do homem
esperava-o no espaço dela
por aviões polinizados
e pelo amor dele nela.

gi

26 março 2009

Talentos (quem os não tem ?)

Sou uma tagarela por natureza, acho que saí à minha mãe, mas quando o JdB, um destes dias, me convidou a publicar um post sobre o tema que eu quisesse, não sei, emudeci, fiquei de tal forma surpreendida que ainda hoje me belisco .... aiiiiiii !

Enfim, perante tantos e tão talentosos bloguistas, confesso que me sinto algo inibida (Dalhe, não se enerve com o meu algo !) e a escolha do tema a tratar não foi fácil.

Detesto quando as pessoas dissertam sobre o que não sabem, quando julgam os outros sem conhecerem os factos ou quando comentam temas que não lhes são familiares.

Nada disso encontro neste Blogue, por isso, vou tentar não ser eu a estreia.

Lancei a mim mesma o desafio de escrever sobre os talentos. Os talentos que há em nós. Os talentos que só nós conhecemos e os talentos que os outros nos reconhecem. Os talentos com os quais nascemos e aqueles que conquistamos. Os talentos que nem sequer sabíamos ter e surgem repentinamente como resposta a uma necessidade. Os talentos que nos propomos adquirir, à laia de desafio. Os talentos que, um dia, julgávamos tão importantes e que, com o passar dos tempos, se tornaram relativos.
Os talentos que admiramos nos outros e os que (quase) invejamos. Os talentos de ordem fisica, os intelectuais e os espirituais. O talentos efémeros e os que permanecem.

Aos residentes do Blogue, em geral, reconheço acima de tudo e sem sombra de dúvida o talento da escrita e da sabedoria; cada um no seu estilo próprio, cada um revelando características e facetas distintas, mas todos contribuindo para um mesmo fim que é, afinal de contas, a excelência deste Adeus; ao Mestre, em particular, reconheço-lhe vários, dos quais destaco a integridade, a seriedade e uma grande espiritualidade; a MTS reconheço-lhe imaginação, criatividade e ousadia; a ATM, profundidade nos sentimentos e capacidade de desafio; a JCN, o talento da poesia e do que é belo; a Monica Bello, objectividade e capacidade de despertar consciências colectivas; a Gi, a assertividade e visão; a DaLheGas, a graça, o humor, a alegria de viver.

Tudo talentos invejáveis, sem dúvida. Mas vejamos, também, aqueles pequenos e desapercebidos talentos, que fazem de nós grandes pessoas. O talento da atenção ao outro ... dois amigos que se encontram, um deles acabou de mudar de casa e arranjou novo emprego “tenho tanta coisa para te contar...”; yet, um olhar atento revela-me que o meu amigo está a passar um mau bocado e as minhas boas novidades poderão, afinal, tornar-se o seu carrasco.... “contar-lhe-ei noutro dia, decido”.

O talento da generosidade escondida ...... o amigo rico, não querendo “ostentar” perante o seu amigo pobre uma viagem de sonho às Caraibas, simula que precisa de um tempo a sós, longe do bulício da vida quotidiana, e pede-lhe, com humildade, que o acompanhe nessa escapadela ... “eh pá, vai ser muito mais giro irmos os dois”.

O talento da honestidade ....... “oh dona Cacilda, a senhora enganou-se no troco; dei-lhe uma nota de 5 euros e não de 50 “

São estes talentos escondidos que nos fortificam por dentro, nos fazem ir mais além, nos tornam vértebras de uma sociedade que cada vez mais se vira para o seu próprio umbigo. A questão que vos coloco é: devem estes talentos escondidos ser revelados, partilhados ? Com quem ? Em que moldes ? A sê-lo, não correriamos o perigo de incorrer em vaidade, soberba ou petulância desnecessárias ? E não sendo, será o homem de hoje (no sentido lato da palavra) suficientemente nobre para continuar a praticá-los e a distribui-los de forma gratuita ?

Depois, há os talentos visíveis, aqueles que mais facilmente se reconhecem nos Mozarts, nos Einsteins, nas Amálias, nos Picassos, ou seja, o talento para as artes, para as ciências, política, dança, musica etc... O talento da genialidade e transformação, do qual dou como exemplo máximo Muhammad Yunus; o talento da liderança e de chefia - Martin Luther King; o talento da humildade e da paz - Ghandi; e tantos outros.

Também há os chamados ‘talentos privados’, aqueles que só deixamos brotar no chuveiro, na intimidade do nosso quarto ou num grupo restrito de amigos. Fazem parte desta categoria, cantar o fado, escrever poemas ou contos, pintar sobre tela, brilhar num jogo de mímica, compor música, preparar um Vol-au-Vent de trufas ou um Soufflé de chocolate.

Já vai longo este post ..... ficarão para outro dia, outros talentos.

Para terminar, não posso deixar de referir que, para mim, o talento mais maravilhoso de todos, um talento que existe em todos nós sem excepção, e que cada um desenvolve na justa medida dos seus outros talentos, é o talento do amor.

Obrigada por me lerem até ao fim.


maf

Informação

Devido a razões ponderosas, a nossa bloguista habitual das 5ªs feiras, Mónica Bello, estará ausente hoje, o que lamentamos. Voltará seguramente na semana que vem, com o seu estilo próprio de jornalista experiente.
Como editor e dono deste estabelecimento, dou o espaço a uma das nossas comentaristas mais frequentes, que nos brindará com um belo naco de prosa. A sair por volta das 09.30h.
Façam o favor de ser felizes - e de se manterem por perto.

JdB

25 março 2009

Largo da Boa-Hora

Há muito que deixámos de ser tribais, há algum tempo que deixámos de ser comunitários.
A aldeia foi substituída pelo bairro, este pela rua e esta pelo condomínio, e este é tão opaco que a vizinhança se reduz à partilha de elevador.
Vivemos dispersos e separados uns dos outros, com barreiras e distâncias que nos afastam.
Hoje, a amizade, e até a família, exercem-se por marcação, como qualquer outro serviço. É preciso combinar previamente, ajustar agendas, conciliar disposições, tirar a senha para o encontro.
O estar juntos, que antes resultava do casual e natural encontro de quem coincidia nos mesmos espaços e tempos de existência, é agora, para acontecer, um acto premeditado, planeado.
A geografia e geometria separam cada vez mais e, paradoxalmente, com a cumplicidade das novas tecnologias de contacto (intencionalmente não as designo de comunicação) como seja o sms, o telemóvel e o email.
Nunca vi um sms comunicar uma lágrima ou um sorriso, nunca vi um telemóvel desvendar um olhar de ternura ou de dor, nunca um email abraçou alguém.
A comunidade tornou-se um imenso arquipélago, em que cada núcleo familiar restrito é uma ilha, e no qual as águas são tão profundas que é sempre preciso barca e barqueiro para nos visitarmos, e está sempre sob um denso nevoeiro tal que nem consente o irmo-nos vendo à distância de um aceno.
Resultado: abandonamo-nos reciprocamente.
Pergunto-me porque é que as coisas são assim. Não culpo apenas as distâncias físicas que nos separam, busco e encontro outras explicações, que aqui deixo para reflectirmos.
A primeira é que interiorizámos, como paradigma civilizacional, que pouco ou nada precisamos dos outros, e estes pouco ou nada precisam de nós.
Numa lógica de predominância de valores materiais, o “outro” perde importância à medida que vai estando assegurada a nossa auto-suficiência material.
Cada núcleo familiar restrito constrói permanentemente a sua independência, a sua autonomia, a sua capacidade de sobrevivência, com recursos próprios, um ter tudo o que se quer, mesmo que seja algo de uso ocasional ou temporário.
Partilhar teres e haveres não faz parte da actual lógica; o “emprestar”, o “dispensar”, o “dividir”, não fazem parte do modelo da sociedade (que ironia, o sentido da palavra sociedade é precisamente o oposto…)
No mesmo sentido, o apelo aos outros para ajudar num empreendimento já não faz qualquer sentido. Quando antes se chamava a “malta” para ajudar a varar o barco na praia, hoje recorre-se ao mercado, e compra-se a tarefa.
Concorre igualmente para o isolamento a falta de entrega a causas, projectos e acções, comuns e comunitárias, a militância social, cultural, recreativa.
Pertencer-se e dedicar-se a um grupo de teatro amador ou de canto, aos bombeiros voluntários, ao grupo recreativo do bairro, à junta de freguesia, à paróquia, ou ao que seja de todos e para todos, à vivência colectiva, é hoje uma raridade que torna o participante numa “ave rara”, num “carola” ou num “santo”, que não se consegue explicar sem um juízo de extravagância, hoje que nem para administrador do condomínio se consegue encontrar um voluntário…
Tornámo-nos todos egocêntricos com ambições e quereres de auto-suficiência e indiferença ao colectivo. Trilhamos, assim, caminhos de isolamento e alheamento.
Todavia, não nos culpabilizemos demasiado. É que concorrem para estas atitudes, para estes comportamentos de isolamento, a justificada preocupação que a vida de cada um nos origina, a angústia destes dias plenos de preocupações que vão correndo sucessivamente em desgaste e temor do amanhã. Na verdade, há medo e esgotamento, e estes originam a busca do refúgio no núcleo restrito, na “casa” de cada um.
É real a componente da exaustão que marca as nossas vidas, de um cansaço que paralisa e predispõe para a fuga do refúgio da “casa”, sem querer ouvir, ver ou saber de mais nada. Até pelo temor de que o contacto com os outros possa originar mais trabalhos, empenhos e preocupações.
Não é despicienda esta vertente de moral e espiritualmente estarmos a ser consumidos, diria até arruinados, por um sistema, por uma máquina trituradora que sobrevive e se alimenta do nosso esgotamento, da nossa mecanização, do sermos autómatos num quotidiano ditado por um “big brother”.
Para muitos, o bálsamo de cada dia é “não haver problemas”. Para quê procurá-los por via do confronto com os outros, quando aliás nos reconhecemos incapazes, sem ânimo ou força, para ajudar?
Muito do nosso “autismo” actual advém da sensação de já nem forças termos para levar a nossa “canga”, quanto mais as dos outros.
A meu ver, importa inverter este estado de coisas, porque, na realidade, e como desde sempre, nós precisamos dos outros e os outros precisam de nós. Necessidade que se não é premente e actual no domínio do ter, o será seguramente no domínio do ser.
O caminho pode estar no conformarmo-nos com as contingências e limitações modernas, que são inevitáveis pela actual natureza das coisas, sem, todavia, prescindir do objectivo de estarmos uns com os outros. Trata-se, pois, de refundar os paradigmas desse convívio.
Basicamente, prescindir do acessório, do mundano, do convencional e protocolar e retomar a essência do encontro, do contacto.
Redescobrir a autenticidade e simplicidade do convívio, despindo-o de tudo o que é supérfluo para aproveitar e desfrutar o que temos de realmente importante para dar e receber do outro.
Como me dizia alguém, “sentimentalizar” a relação, por oposição à prática da sua “materialização”.
No concreto, falo de inovar tempos, modos e espaços de encontros, proponho passeios por parques e jardins onde estavam cinemas e saídas nocturnas em diversões; proponho tertúlias de conversa ao serão onde estavam jantares em restaurantes; proponho hospitalidade sem mais que dar do que nós próprios; proponho redescobrir a visita como tal, e não como acontecimento social.
Muitas serão as formas de inovar no modo de nos relacionarmos, que serão tão mais gratificantes quanto mais descomprometidas com o “social”, e mais empenhadas no reforço de uma intimidade e autenticidade de partilha.
Voltemos a encontrar-nos como que por acaso. Ficcionemos a imprevisibilidade e deixemos o improviso acontecer.
Mas tal não bastará. Tenhamos presente que estarmos juntos é uma riqueza, é um bem escasso, pelo que teremos que elevar o conteúdo desses momentos, não os desperdiçando com banalidades e vulgaridades, seja de atitudes, seja de pensamentos, seja de comunicações.
Estou certo que nos reencontraremos mais e melhor.

ATM

24 março 2009

História com música – II

(These foolish things remind me of you)

Em volta de ti
o piano ficou suspenso
da mão em garra
à espera que o contrabaixo
acabe de remoer o desgosto.

Em volta de ti
aligeiro compassos
vagabundeando o saxofone
e a noite quente cansada
balança enlaçada
em volta de ti.

A luz que chega depois
encontra-me aqui
em volta de ti.

JCN

23 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, data irrelevante

Contam as más-línguas que o Sr. Carlos Santos foi um militar feroz, implacável, cumpridor à risca das ordens que lhe eram transmitidas ou que ele próprio ditava aos seus subordinados com uma voz possante de militar inato. Nas várias missões que cumpriu em Moçambique, há quem o diga, terá sido protagonista de pequenas atrocidades – não suficientemente grandes para terem interesse jornalístico, mas significativas bastante para ficarem gravadas na mente de quem o acompanhou. Homem lembrado pelos seus camaradas - pelos melhores e piores motivos - consta que exerceu as suas várias funções com mão de ferro.

Quando veio pela primeira vez a esta Fábrica da Ilusão, passou pelo gabinete da Dra. Clara para, a seu pedido, conversarem um pouco. Apesar dos seus quase 60 anos, é um homem forte, encorpado, revelando uma excelente preparação física construída em ginásio, não só por gosto próprio, mas também pelas funções que exerceu de segurança privado – a pessoas ou estabelecimentos da noite. Tem um ligeiríssimo tique que se traduz por um tremor quase imperceptível do lábio superior e, refere quem o conhece, um discurso político marcado por laivos de racismo.

Quando a Dra. Clara assomou à porta do gabinete e, com o antigo militar de lado, me disse apenas

- Amália? Chame a Honória, se faz favor

desconfiei, por um segundo apenas, da lucidez da escolha.

A Honória é uma moçambicana da Beira, da Manga, onde a família vivia juntamente com grande parte dos seus conterrâneos. Filha de uma empregada doméstica que servia uma família no Macúti, foi confrontada com a morte do seu pai, um guerrilheiro da Frelimo, às mãos do exército português. Tinha um ano, e a guerra colonial acabaria daí a poucos meses. As circunstâncias próprias da vida trouxeram-na para Portugal, onde termina tardiamente o curso de História, depois de ter investido parte do seu tempo na investigação da guerra colonial em Moçambique.

É uma mulher lindíssima. Alta, magra, tem uns olhos esverdeados e um cabelo negro e volumoso. É de uma discrição rara, pois nunca levanta a voz, e queda-se por largos momentos num silêncio emoldurado por um sorriso genuíno e uns dentes sem defeito.

Levou o Sr. Carlos Santos - ou o Sr. Alferes, como também é aqui tratado - para o quarto. Pôs música moçambicana como acompanhamento de fundo e sentou-se no sofá, vestida de uma forma simples com uma T-shirt e umas calças de ganga. O ex-militar despe-se numa atrapalhação constrangedora e, por fim, nu e de braços caídos ao longo do corpo, murmura uma frase sumida, contrastante com a sonoridade com que gritava comandos aos seus soldados:

- O que queres que faça agora, Honória?

Honória não responde. Pela sua cabeça passam as memórias de um pai de que não se lembra mas que foi entregue à família morto e crivado de balas. Recorda-se da mãe que lhe falava na praia do Macúti, da marginal por onde passeavam as famílias que ali viviam, do pôr-do-sol que nunca mais encontrou igual. Levanta-se e, independentemente de uma música que toca baixo mas com um ritmo batido, há um silêncio que dói. Honória despe-se em frente de Carlos Santos, revelando uma pele escura e sensual, um peito que não é mais do que uma duna suave, umas pernas esguias que parecem não ter fim, umas nádegas que mantêm o encanto das coisas perfeitas. Volta então a sentar-se no sofá, de onde não se levanta.

Durante aquela hora contratuada, o militar fica em pé, nu e de braços caídos. Num sofá de vime com umas almofadas cor de terra africana, a moçambicana senta-se, distende as pernas, muda de posição, apanha o cabelo, passa uma mão lânguida pelo corpo, fecha os olhos, corre a língua viscosa por cima de uns lábios grossos. Quando a hora está a chegar ao fim, a estudante de História dá-lhe um beijo longo, sensual, erótico, carregado de desejo. Não o deixando nunca tocá-la, fala-lhe numa voz mansa e baixa, desprovida de qualquer raiva, lembrada apenas da mãe, Luísa, que lhe falava do pinheiro da praia onde ia com os seus três meninos ao fim da tarde jogar às escondidas:

- Volta para o mês que vem. Nessa altura sim. Agora vai.

Quando passa por mim na entrada e se despede, o alferes Carlos Santos tem os olhos avermelhados de quem chorou copiosamente. O lábio treme com mais força. Ainda olha para trás, mas Honória já lá não está, porque o seu silêncio a leva de volta à Beira, aos meninos de quem a mãe tomava conta, a um pai que lhe foi entregue inútil e desfeito. Ao beijar o ex-militar, Honória dá o primeiro passo no sentido da reconciliação com o seu passado, encerrando numa gaveta a sua investigação sobre a guerra colonial. Daí a um mês, naquele mesmo quarto, dirá ao alferes Carlos Santos, militar que foi feroz e desapiedado dos seus inimigos:

- Não me possuas. Ama-me.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

22 março 2009

4º Domingo da Quaresma

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Por uma razão ou por outra, tenho vindo a falar com algumas pessoas sobre missas. A missa aqui que é diferente da missa ali; o padre que a reza desta ou daquela forma; as homilias, as músicas, os fiéis, o interesse, a vantagem, a importância, a duração, etc., etc., etc.

Expurgo deste post considerações de carácter mais teológico ou doutrinário, para as quais não tenho sabedoria. Mantenho este texto no domínio das coisas simples, do dia-a-dia, daquilo que mexe mais comigo, que me motiva e que, entre outros aspectos, me leva todos os Domingos à mesma Igreja, à mesma hora habitual, há tantos e tantos anos.

Tenho fé - aquela que me diz que a recompensa por acreditarmos no que não vemos será vermos aquilo em que acreditamos; creio na mensagem de Cristo como um conjunto poderoso de ensinamentos para se ser melhor; sinto-me feliz numa Igreja Católica que, como já escrevi, tem imperfeições, incoerências, erros. Mas é a mesma Igreja que ajuda o próximo, está do lado dos fracos, estende a mão aos escorraçados.

Raramente faltei a uma Missa dominical, mas assisti a muitas com a mente noutro lado, preocupado com outras coisas, entusiasmado com outros pensamentos. Confesso que cheguei a escrever artigos e a fazer versos - mentalmente, claro está! Mas, no meio de uma homilia de que ouvia pouca coisa, havia sempre uma frase que me batia na testa, como se me fosse dedicada; do Evangelho, de que fixava metade, uma linha, um pensamento, encaixavam-se na minha vida como se tivessem sido escritos exclusivamente para mim. Nunca me preocupou a qualidade do sermão, porque sei que, na generalidade dos casos de hoje em dia, ninguém fala sempre bem ou sempre mal. Há dias inspirados, outros em que o alinhamento de duas frases é um suplício. E, no limite, bastam-nos as leituras, que dão pistas suficientes para o encaminhamento da nossa vida à luz daquilo em que acreditamos.

Muita gente se enerva com as pessoas que vêem na Igreja, porque lhes conhecem defeitos que sentem ser incompatíveis com uma prática religiosa e de defesa de alguns princípios. Raciocinar nessa base é entender que aquele espaço devia ser reservado para os puros, os perfeitos, os que estão mais próximos da santidade. Cada um que se senta naqueles bancos, normalmente desconfortáveis, tem uma motivação própria. A mim cabe-me a certeza de que não sou melhor do que ninguém, e que entro naquele espaço para ser santo, não porque sou santo.

Acredito no poder da oração como elemento pacificador da minha vida interior. Tenho suficiente história de vida para já não pedir muito, a não ser discernimento para saber o que fazer, e força para o seguir. Mas é ali, naqueles quase 60 minutos semanais, que vou buscar inspiração para o repto da tolerância, do perdão, da minha manutenção no lado luminoso da vida, como já aqui escrevi, também. E, como há incoerência entre aquilo que defendo e aquilo que pratico, volto lá na semana seguinte - distraído, concentrado, comovido, fixando uma frase, um pensamento, uma ideia.

Por mais que seja vencido por outros raciocínios, gosto de pensar que todas essas minudências - o padre, a homilia fraquita, as músicas desafinadas, os fiéis mais isto ou mais aquilo - não são mais do que cães que ladram (com todo o respeito) perante uma caravana que teima em passar e que é maior do que nós: a mensagem de Cristo, a genuína doutrina social da Igreja, o desafio da santidade.

Adeus, até ao meu regresso...

JdB


21 março 2009

Ambrósio, apetecia-me…

Havia um rapazinho muito bonitinho que, tanto gostei logo, como achei que não tinha qualquer chance. Meteu-se comigo! e namorei-o um longo tempo. Nesse tempo, uma palavra pedrava no sapato. Era uma ferida que se abria lanho a lanho, a esgravatar-me até às entranhas. Ele dizia "algo". "Algo" assim, "algo" assado. "Algo" agora e daqui a nada. Mortal como um tiro, fulminante, sempre que o mocinho vociferava a dita, com a agravante de repetidas vezes me tratar na terceira pessoa do singular, o meu encanto quebrava-se como sei lá o quê. "Ela quer algo?" Haaaaaaaaa, deixava-me sem ar.

Ele haverá por aqui quem consiga reeditar a imagem caótica do meu "algo"?
Dão-se alvíssaras!

DaLheGas

20 março 2009

os impérios interiores





nos anos noventa, o mundo da moderna música popular de origem anglo-saxónica viu nascer um pequeno movimento musical, caracterizado pelo carácter indolente das suas canções: lentas, lânguidas, atmosféricas, como que usando e abusando de uma espécie de efeito 'de suspensão', apoiadas em melodias cristalinas e na arte de criar subtis filigranas de extraordinária beleza.

os 'mazzy star' foram uns dos arautos desta corrente a que alguém chamou 'slow core'. outros preferiram o termo 'sad core'. eu gosto de 'slow sad core', porque serve maravilhosamente uma certa ideia muito própria sobre a beleza de certas coisas 'lentas e tristes' - espécie de virtuosa propagação do que, em contra-ciclo, se afirma propositadamente contra a modernidade mais agitada, mais esvaziadamente vitalista, mais ultra-repentista, mais politicamente correcta.

estes dois videozinhos são, para mim, o 'nec plus ultra' desta banda. 'fade into you' e 'flowers in december' são títulos-programa. e são, também, canções para ouvir em noites de lua cheia, deitados numa cama de rede, sob o céu estrelado. 4 minutos + 4 minutos, mais coisa menos coisa, em que, bem no fundo do fundo de nós, são erguidos impérios que logo logo se desmoronam. mas, enquanto duram, são de uma majestosa beleza, de uma incontornável intensidade, como se tudo o resto, por momentos, deixasse de existir. é esta propriedade 'da suspensão' que torna esta música especial. porque o 'suspension of belief', como nos ensinam os almanaques mais académicos do cinema (e do show biz), são uma espécie de suave e acessível milagre - e desculpem a palavra, eventualmente inexacta.

que gostem como eu um dia gostei - incondicionalmente. que é sempre a melhor maneira de conjugar o verbo gostar..

19 março 2009

Dia do Pai

Hoje é dia 19 de Março, e eu não esqueço a minha condição de pai.

Hoje também, mas há oito anos, recebia uma chamada feita por um telemóvel cujo número me era próximo. O susto começou quando me apercebi que quem estava do lado de lá - que eu também conhecia - não pertencia àquele telefone. O sufoco continuou com as duas ou três frases que se seguiram. A combinação não podia ser mais desastrosa - a voz, o número de telefone, o discurso.

De então para cá a minha vida mudou radicalmente. O que era dado como garantido tornou-se incerto, abri os olhos para outras realidades, fui confrontado com a dor e a esperança, a alegria e o sofrimento, a proximidade e a indiferença - tudo isto em doses que me pareceram, muitas vezes, demasiadas. De bom grado voltaria atrás, a uma vida mais pacata, mas talvez com menos sentido, a uma existência mais mansa, mas talvez menos desafiadora.

O meu post de hoje é dedicado aos pais, no sentido masculino do termo. Em primeiro lugar, àqueles que, vítimas do infortúnio, viram os seus filhos partir na curva da estrada. Alguns que eu conheci, outros tantos cujo nome não sei, muitos ainda com quem me cruzo na incógnita da vida. A lógica das coisas manda que nós vamos antes deles, e é por isso (também) que ainda não se encontrou um nome para um pai em luto.

Vai, também, uma palavra especial para aqueles que, olhando para os seus filhos, ainda vivem o sufoco da doença, a aflição do futuro, o desafio da esperança, a angústia da distância. Que não percam a confiança, a fé (independentemente da forma em que se manifesta), a capacidade de ir à luta, o sonho de dias melhores. Tenho muitos, também, de quem me lembrar.

Por último, a todos os pais felizes de filhos saudáveis e próximos, para que gozem a sua paternidade de uma forma responsável e plena, na lembrança de todos aqueles que o quiseram fazer e não conseguiram, porque as circunstâncias da vida os não deixaram.

E porque hoje me lembro da minha condição de pai, fica uma palavra especial para o meu próprio.

JdB

Volto já


Podia ser uma vista aérea sobre as montanhas do Afeganistão, mas na verdade a vista é sobre uma paisagem bastante mais domesticada: os Alpes, algures entre a Áustria e a Alemanha. Um dos caminhos que vão dar a Berlim.

Mónica Bello

18 março 2009

Largo da Boa-Hora

Sob o sol primaveril que ilumina o largo e dá ares de talha dourada a este meu banco, pergunto-me qual o maior tesouro da nossa vida, qual o valor mais precioso que nos é concedido.
Considero e pondero, detalhada e cuidadosamente, as várias fortunas de que dispomos, e, depois de muito examinar e peneirar, consigo eleger aquela que é a riqueza superior às demais, a rainha das nossas venturas.
A primeira surpresa deste meu exercício é que não suspeitava que o elencar sistemático e exaustivo dos “activos” originasse um rol tão extenso. Fiquei surpreso com a multiplicidade de “bens” que compõem a nossa vida, assim como com a suficiência formada pelo conjunto: “tanto mar têm os nossos barcos para navegar”.
Também me impressionou quanto a riqueza material se desvaloriza no “ranking”, quando em concurso com as riquezas espirituais. A matéria é pó quando comparada com a essência, com a alma, com os sentimentos.
A rainha das venturas, é haver quem precise de nós. Não me refiro a alguém indeterminado da comunidade, mas a alguém em concreto, a que estejamos ligados por laços de amor. De igual modo, não me refiro apenas a uma pessoa, mas às pessoas que, por causa desses específicos e particulares laços de amor, formam o nosso núcleo existencial.
A grande riqueza é esta certeza, este saber convicto, de que para alguém somos contributo decisivo para o seu bem, para a viabilidade da sua felicidade, para a realização dos seus sonhos, ambições, projectos, e tudo o mais de construção de uma vida.
Do mesmo modo que para esse alguém somos bálsamo, refúgio, ajuda nas tristezas, desalentos, dores e infortúnios, acompanhando derrotas e medos, testemunhando inquietudes e angústias, suavizando remorsos e erros.
Para esse alguém somos espelho que não consente máscaras, dispensa maquilhagens e disfarces, somos procurados para reflexo da verdade, e não camarim de actor.
Para esse alguém somos parte e condição da vivência, da alegria e da tristeza.
Olhar e ver, ouvir e escutar, falar e dizer, tocar e sentir, consumam-se na partilha com esse alguém que nos precisa.
Para esse alguém somos, afinal e sempre, bordão de peregrino na romagem da vida.
Essa utilidade, necessidade, enche-nos de felicidade e encantamento, dá-nos sentido à vida, é estrela polar que marca o nosso norte e empalidece as tantas constelações celestiais que brilham, apontando outras direcções e rumos.
Servir esse alguém é vocação bastante, é missão suficiente para todo o “eu” fazer sentido, para o “eu”acontecer por uma causa e não por mera casualidade.
Sem esse alguém seriámos, provavelmente, seres erráticos, desnorteados, por não ter de quem ser bordão.
E este ser bordão é condição inesgotável, porque a cada nascer do sol se renova a oportunidade de continuar a caminhada. Há sempre um amanhã e há sempre mais caminho, até ao fim da longa jornada.
Nunca a missão está completa, nunca a vocação está saciada, regenera-se no dia-a-dia e essa continuidade é, por natureza, a fonte da tranquilidade.
Trata-se de uma dependência desejada e consentida, fruto de uma reciprocidade de eleição do bem mais precioso, com a assunção de que amar é querer ser o bordão do outro, e desejar que o outro precise que nós sejamos o seu bordão.
Muitas formas existem para definir o amor, para o demonstrar e para o viver quotidianamente.
Este texto é sobre o amor, tendo seguido uma dedução que me conduz à definição que o amor é, metaforicamente, ser eleito o bordão do outro, que é, reciprocamente, o nosso bordão.
Focando-nos agora e exclusivamente no amor entre pares (deixemos, pois, o filial, parental, fraternal, em que somos bordões por tempos ou ocasiões) três notas finais completam o quadro que quis esboçar.
A primeira, é no sentido de que, enquanto cada um se revir e sentir como bordão do outro, a relação se manterá forte, leal e segura, apesar das vicissitudes surgidas no caminho. Enquanto a mão amada me segurar como seu bordão (e vice-versa) os sulcos e obstáculos do caminho serão ultrapassados e vencidos, desaparecendo na curva do caminho.
A segunda é que a mão e o bordão vão envelhecendo e desgastando-se juntos. O que ambos perdem em qualidades de juventude ganham em conhecimento, ajeitamento e confiança, cada dia mais moldados, cada dia mais calhados; os nós das mãos conhecem os nós do bordão e sabem senti-los.
A terceira é que a jornada a dois termina, definitivamente, quando por razões que a razão desconhece, o bordão, antes amparo indispensável, se transforma em objecto inútil, empecilho de caminhadas ou estradas diferentes que se querem calcorrear ou percorrer.
Para mim basta-me esta metáfora.

ATM

17 março 2009

Explicação

Devido a um imponderável com o editor e dono deste estabelecimento, a habitual crónica de JCN não sai hoje, tendo sido substituída por um poema. Pedimos desculpa por esta interrupção, que priva os leitores de textos magníficos. Ele há dias...

JdB

Poemas dos dias que correm

Prece

Talvez que eu morra na praia
cercado em pérfido banho
por toda a espuma da praia
como um pastor que desmaia
no meio do seu rebanho.

Talvez que eu morra na rua
e dê por mim de repente
em noite fria e sem luar
irmão das pedras da rua
pisadas por toda a gente.

Talvez que eu morra entre grades
no meio de uma prisão
que o mundo além das grades
venha esquecer as saudades
que roem meu coração.

Talvez que eu morra no leito
onde a morte é natural
as mãos em cruz sobre o peito
das mãos de Deus tudo aceito
mas que eu morra em Portugal

(Pedro Homem de Mello)

16 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de declaração do IVA

O Sr. Armando Ventura chegou à idade da escolha e seguiu aquilo que entendeu ser a sua vocação – a Contabilidade. Não a que se prende com o controlo de empresas e particulares, fugas à máquina fiscal devoradora e tentacular, arquivo zeloso de uma miríade de papéis de tamanhos diversos. O Sr. Ventura sentiu o chamamento (a tal vocatio) da simetria dos números, a sua ordenação perfeita em colunas semelhantes, a igualdade do deve e do haver – não fruto de um qualquer acaso da matemética, mas obra de uma correspondência irrepreensível, embora nem sempre entendida.

O contabilista é um homem alto e magro, com um olhar vivo por detrás de umas lentes redondas. Penteia uma cabeleira farta e grisalha para trás, porque é essa a forma de fugir à assimetria da risca ao lado. Quando veio pela primeira vez a esta Fábrica das Ilusões escolheu a Joana, uma lisboeta arruivada com um cabelo liso apartado ao meio - rigorosamente ao meio.

Quando foram para o quarto, o Sr. Ventura pediu à parceira

- a Joana não se importa?

para se despir e se mostrar de frente e de costas. Não havia, naquele pedido, nenhum fetiche especial, desejo de humilhação, extravagância erótica. Havia, simplesmente, uma vontade de apreciar a simetria daquela que iria estar consigo na próxima hora e, quem sabe, noutras mais.

A Joana, estudante esforçada do curso de Relações Internacionais, abriu um sorriso franco e cumpriu os desejos daquele cavalheiro educado, simpático - e meticuloso. Enquanto tirava a roupa com vagar e cuidado, o homem dos números, dos planos de contabilidade e dos balancetes ajeitava um ou outro bibelot, um cinzeiro, uma caixinha com cigarros, dois ou três livros que enfeitavam uma mesa. Pequenos nadas que decoram um ninho de amor e que ele entende, por uma questão de coerência, que devem obedecer a uma harmonia sem recriminações. No fundo, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. Em nome do equilíbrio, do encaixe das coisas, da esquadria dos objectos. Da simetria, vá! diz ele.

Completamente nua, a estudante deixa cair os braços e sorri para o contabilista que, não tirando os olhos dela, compõe ainda um par de castiçais ligeiramente deslocados relativamente à moldura da qual são guardiões. Um toque ínfimo, mas mesmo assim importante.

- Obrigado, Joana. A menina é de uma simetria perfeita. Os seios, o cabelo, a posição dos olhos... Importa-se de se virar? Notável, notável! Há muito tempo que não via uma coisa assim. Duas metades iguais, se me é permitido este pleonasmo.

É então que o cliente se despe, revelando à operária que o acompanha uma cicatriz grande, que lhe corre ao longo da perna direita e que justifica o coxear que evidenciou à entrada. Não podendo ser, ele próprio, a evidência da simetria, o Sr. Ventura procura-a e encontra-a na Joana, como se abraçasse uma demonstração de resultados inundada de perfeição, correspondência, equilíbrio, sem um número desajustado que desfeie a proporção das colunas. Não sendo a simetria, Armando Ventura possui-a.

Hoje, chegou ao pé de mim e mantivemos um diálogo, no mínimo, surpreendente. Privilegie-se o factual em detrimento da apreciação.

- Boa noite, Amália.
- Boa noite, Sr. Ventura, como está?
- Bem, muito obrigado. Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Claro, Sr. Ventura. Espero saber responder...
- Saberá com certeza. Qual é o seu preço?
- Como?
- Não me leve a mal. Mas qual é o seu valor por uma hora de prazer comigo?
- Não tenho. Não faz parte da minha descrição de funções.
- Tenho a sua autorização para falar com a Dra. Clara?
- Não me parece, Sr. Ventura. Lamento desiludi-lo.
- Pense no assunto, Amália, e diga-me.
- Duvido... Mas satisfaça-me a curiosidade.
- Faça favor.
- Porquê eu? Tem a Joana e tantas outras raparigas lindas...
- A simetria, Amália. Nada mais do que a simetria.
- Como assim?
- Estar com a Joana é olhar a simetria, vê-la na frente.
- E não chega?
- É um lenitivo, um bálsamo, mais um dia no corredor da morte.
- E o que precisa ainda?
- Preciso de ser a simetria!
- E consegue sê-la comigo?
- Sim, claro. Qual é a perna de que coxeia?
- A direita, porquê?
- A minha também. Já nos imaginou aos dois num abraço desnudo? Cada um de nós é, por si só, a assimetria, o desencontro, o desbalanceamento, o tropeço. Os dois juntos somos a simetria perfeita, a proporção notável que deriva da junção de dois corpos que, isolados, não são mais do que um defeito da natureza, ou das circunstâncias.
- Pois... Mas confesso, Sr. Ventura...
- Não me diga nada, Amália - apenas o seu preço. E se possível que seja um número simétrico.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

15 março 2009

3º Domingo da Quaresma

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

São brutais as notícias de violência que chegam até nós. Não só a de guerras e atentados mas também as mais próximas, em famílias (dolorosamente chamada “doméstica”), e escolas, e bairros. Violências a que chamamos estúpidas e irracionais, feitas de lutas de poder e raivas contidas, mas que precisam de ser lidas e interpretadas. Muitas vezes são “gritos” contra uma certa “domesticação” da vida, ou reacções a injustiças crescentes, mas não se podem legitimar por qualquer razão. É comum sentirmo-nos impotentes mas é preciso olhar de frente a realidade, porque o silêncio e a indiferença são tão graves como a própria violência.

Em todos os evangelhos é narrado o gesto corajoso e provocatório de Jesus no Templo de Jerusalém. Expulsando os vendedores de animais para os sacrifícios e derrubando as bancas dos cambistas que trocavam o dinheiro dos peregrinos pela moeda sagrada do Templo, Jesus ataca o coração da religião judaica. Ali estava a presença de Deus na terra. Não em imagens, mas num espaço que simbolizava como os judeus se consideravam “proprietários” de Deus. E não será essa a maior idolatria? Tentar ser “dono”, senão de Deus, pelo menos da sua Palavra e da sua interpretação?! Dono da lista de “sacrifícios” de purificação e oferta que eram necessários para o “encontro” com Deus?! Um Deus que se podia “meter” no bolso, como mais um cartão de crédito salvador?!

A “explosão” de Jesus proclama que Deus não pode nunca ser comprado. Que não há portagem a “pagar” para o encontro com Ele, nem “via verde” para alguns privilegiados. Que “a religião não está primeiro”, como dizia José António Pagola num comentário a este texto: “A actuação de Jesus alerta-nos a todos os seus seguidores e obriga-nos a perguntar-nos pela religião que estamos a cultivar nos nossos templos. Se não está inspirada por Jesus, pode converter-se numa maneira ‘santa’ de fechar-nos ao projecto de Deus que Jesus queria impulsionar neste mundo. Primeiro não é a religião, mas sim o reino de Deus.”

Às vezes são precisos gestos ousados para acordarmos. Não da violência que destrói, mas sim daquela que nos convida a trabalhar por um mundo mais humano, por uma compaixão efectiva. Cada um procurar só o seu bem-estar e os seus interesses é criar condições para maior violência. É acomodar-se ao “templo” da nossa “religiãozinha”, que consola mas não muda nada. Cuidado! Já sabemos o que Jesus pensa disso!

Texto do Pe. Vítor Gonçalves, tirado daqui

14 março 2009

Quem durante alguns dias não viveu e não passeou nesta ridente e amorável região privilegiada das éclogas e pastorais, não conhece de Portugal a porção de céu e de solo mais vibrantemente viva e alegre, mais luminosa e mais cantante.”

Ramalho Ortigão, AS FARPAS



Hão-de chegar mais se Deus quiser. Aqueles que aqui sentem uma nova esperança, um “noves fora nada” que lhes desempate a vida. Aqueles, como estes, já encaixados na perfeição e que de cá só saem quando é imperativo. Casas de Além, assim lhes chamaram Rui e Paula, depois da madeira chegar, talhar-se e erguer-se à vista magnífica onde cabem os montes da Serra Amarela, as curvas do rio e a sua margem esquerda que o Sol inunda até cair. Criptoméria, o cedro do Japão, vindo dos Açores, madeira aromática, resistente e leve, clarinha, rosada, textura sem raios e grão uniforme é de péssima permeabilidade, como se deseja numa região húmida e chuvosa.



Pegasse a moda de construir em madeira o nosso amanhecer seria outro com certeza, porque nestas casas os nossos próprios sons têm uma ressonância diferente, um eco apaziguador, e o aroma é mesmo uma boa inspiração. Uma sala ampla, um quarto, outro quarto em mezzanine, várias camas, janelinhas para o céu, para a lua, para as luzes das aldeias espalhadas. Uma casa-de-banho tão risonha, um duche largo e confortável. Cada casa pode albergar seis pessoas, mas quatro é a justa medida. Prontas desde o Verão de 2005, as Casas de Além têm sido bem gozadas e pouco falta para que haja outras… umas outras, em Gração também.


Gração é aldeia dos Arcos de Valdevez. De pedra, só granito, arquitectura rural, disposta encosta arriba, bastante só: a escola primária conta apenas três meninos, e prepara-lhes transferência para outra freguesia. Sem concorrência, a merceeira tem de fechar a loja para ir ao café tirar bicas, ou fechar o café para vir aviar arroz e massa. E no entremeio desta vida parada, o casal feliz chegou do Porto, fez-se à obra da sua casa de pedras em ruína e deitou aos socalcos as ditas casas de madeira, tão alegres, tão purinhas dentro e fora, que ao segundo dia de lá se acordar há uma espécie de energia danada de boa que nos tira da cama e nos põe a correr lá para fora. É que aqueles alpendres são toda a história deste lugar, a que mais se quer ouvir.



Foram sim, dias que pareciam férias antigas. Que a cada hora a calma se instalava, que a cada dia eu morria e renascia, deixava para trás a vida imposta de adulta deitada à cidade e minguava até à infância que também se fez por ali, no mesmo Minho, nas quintas, nos campos, nos rios cristalinos. Leitores, venho profundamente esperançada que esta minha terra, como se fosse natal, este vale fértil, verde, vinhateiro e bonito que encaminha o Lima ao mar, há-de ver chegar em abundância, quem venha por bem. Há-de ter quem a salve quando os seus velhinhos não estiverem cá para granjear as serras, as leiras, as margens dos regatos.



Sim, está bom de ver que são estas almas resistentes quem lhe vai valendo. Roça-se o tojo nas matas, limpa-se as silvas dos caminhos, seguram-se os muros, abrem-se os carreiros, lavra-se e semeia-se, poda-se vinha e árvores de fruto, apanha-se a lenha, faz-se o que se vai podendo, como dizem. Ainda se sangra a lavoura, ainda se vê muita sachola às costas a caminho da lide, muito gado com dono, galinhas cacarejando atrás das redes. E cheira a broa, a chouriça na sopa, a fumo, a palha, a bosta. Há lenços à cabeça, peles trigueiras do sol, mãos e unhas moídas de trabalho e gente que esfola a concertina e dá voz a versos antigos em modinhas alegres.

Casas de Além
Gração
http://www.casasdealem.com/


DaLheGas

13 março 2009

notas dissolventes (ou a essência decantada da espuma dos dias)

quem me lê (aqui no 'adeus..' ou no 'flores..') sabe que não tenho por hábito comentar essa coisa viscosa chamada 'actualidade'. as minhas actividades na blogoesfera não nasceram de um ímpeto comentarista - e sou daqueles que entende que devemos ser ciosos da nossa missão, da nossa vocação.

dito isto, irresitível deixar aqui umas breves notas, a título algo excepcional:

a) parece que centenas ou milhares de clientes do BPP se arriscam sériamente a perder parte muito significativa dos seus depósitos e/ou aplicações. faz parte das regras do jogo, nesta sociedade de especulação-intensiva, dir-me-ão os mais 'liberais' (na acepção económica do termo). certíssimo. o problema que nos desgosta e desgasta é a subtil diferença entre o jogo financeiro e conceitos como 'informação errónea', 'aconselhamento abusivo', 'fraudezinha suave'. alia-se esta com a chico-espertice e a falta de cultura económico-financeira e o resultado é o desastre. a mim parece-me que, mais uma vez, a palavra é também.. impunidade.

b) escutamos na rádio que um dos administradores do BPN foi demolidor no seu testemunho, na Assembleia da República, sobre o ex-presidente do banco, relatando conselhos de administração 'caóticos', entre outros adjectivos pouco simpáticos. está no seu direito - e, se calhar, no seu dever. mas onde pára a cortesia profissional e o saber tirar consequências das coisas? estas pessoas, que agora parecem desesperadamente descartar responsabilidades, também descartaram os salários e regalias que auferiam, na pretérita qualidade de administradores? todos sabemos a resposta. não quero parecer justiceiro, mas qual é a palavra? ah, pois, é feia..

c) no consultório, enquanto esperamos, assistimos, via "SIC Notícias", ao esplendor das trocas de galhardetes entre as delegações portuguesa e angolana. uma certeza: isto é o espectáculo da 'real politik' elevada a 'política de Estado'. e uma dúvida inquietante: 'se fôssemos nós, naqueles cargos, como actuaríamos?' esta é a parte de que os portugueses sempre se esquecem. criticar é mais ou menos fácil - ainda que, para o ser com inteligência, requeira alguns 'skills' -, agora indagarmo-nos a nós próprios é bastante mais difícil, não é? qual é a palavra? agora escolha(m), como dizia a outra..

d) parece, diz-nos o 'público', que a editora campo das letras, do porto, está em falência técnica. precisa de um milhão de euros que 'dificilmente aparecerá'. tenho, lá por casa, bons livros editados por estes senhores. enfim, a vertigem dos pobrezinhos - e desculpem a expressão - é a incapacidade de quebrar o ciclo de pobreza. falo do país, claro está. não faço ideia se a editora foi bem ou mal gerida; não conheço os seus proprietáros; não sei ver se é apenas e só o sacrossanto mercado a funcionar. mas, acho eu, tenho o direito, ia escrever de cidadania, de me sentir um bocadinho triste com este tipo de notícias. e de achar que, de forma mais linear ou mais oblíqua, ficamos todos um bocadinho mais pobres. qual é a palavra? ãh? 'malaise', em francês e tudo? pode ser..

e) quem me conhece, sabe que uma das coisas que mais me liga à terra, digamos assim, é o sporting. de facto - reconheço-o perfeitamente -, uma coisa que tem o condão de me alterar significativamente o estado de espírito, o humor, o ânimo, concerteza que alguma importância terá. ontem, mais uma vez, demos uma paupérrima imagem do clube (do país? mas, neste campo dos futebóis, tendo a não confundir as coisas..). 7-1, em munique. depois de 5-0 em alvalade. mau demais. hoje, ao ler alguns dos blogs sportinguistas que inundam o ciberespaço, por entre desabafos emocionados, impropérios em barda e coisas afins, encontrei um 'post' assim titulado: 'holocausto sportinguista'. percebo a ideia. mas usar essa palavra maldita para designar um facto desportivo (mesmo que seja muito mais do que isso, como bem sabemos) deixa-me indignado. de facto, as palavras podem ser letais. e, quando tratadas com os pés, atrozmente ridículas. qual é a palavra? náusea?

12 março 2009

Uma redacção nova


Uma casa nova para uma marca de informação nova vai marcar uma nova maneira de organizar e distribuir informação em Portugal. A equipa do i senta-se agora nas instalações definitivas, desenhadas por Luis Calau, arquitecto português com atelier em Barcelona. Um espaço aberto com 1300 metros quadrados organizado em estrela, dominado por um núcleo central, mais conhecido por “hub” ou “superdesk”, responsável pela distribuição e organização da informação pelas várias plataformas de publicação: papel e online.

Quatro dias depois da estreia, um tapete vermelho continua a dar-nos as boas vindas todas as manhãs. O tempo corre. Sem tempo para respirar. Aproxima-se o dia i.

Mónica Bello

11 março 2009

Largo da Boa-Hora

Correm os dias, flui o tempo, tudo vai passando.
Pergunto-me qual será a chave para que cada momento que corre seja tempo de vida e não vida do tempo.
No fundo, como viver para sermos nós a passar pelo tempo e não o tempo a passar por nós. Como cavalgar nos ponteiros do relógio, em alternativa a contemplar o seu movimento na ânsia das badaladas que vão ditando o acontecer das rotinas.
Assim como cada espaço tem de ser preenchido para não ser vácuo, também cada tempo tem de ser “humanizado”, para não ser ponto indistinto de um infinito contínuo.
Humanizar cada tempo é acção individualizada de cada um, e significa preenchê-lo com a sua presença activa, ingerência, manipulação, com vida, para que nunca ocorram as “horas mortas”, dado que a morte nunca é das horas, mas sim de quem as não vivifica e anima.
Os momentos não morrem - quem morre é aquele que os desperdiça, não os vivendo, não os sentindo, desprezando-os, e, até, ansiando que passem.
Não proponho resolver esta equação com o apelo a que cada um humanize o seu tempo com grandes obras e feitos, com projectos importantes, com fantásticos acontecimentos, numa sucessiva vida de ribalta e importância, útil, profícua e valorosa.
O meu caminho não é esse, a minha chave não está no lugar-comum que sentencia que cada segundo é tão precioso e irrepetível que não pode ser gasto senão em coisa transcendente.
Não, o que proponho é que não desvirtuemos a realidade da vida e do homem, mas que seja precisamente a partir dessa realidade que consigamos a humanização do tempo que reputo indispensável a uma vida bem vivida.
Efectivamente, tenho por pressuposto que, por um lado, a vida é composta de muitos momentos, banais, comuns, vulgares, rotineiros, sem qualquer importância especial ou que mereçam menção, bem como escassos são os acontecimentos, coisas ou projectos, em que cada um participa ou tem oportunidade de participar, e que têm objectivamente grande valor, importância, influência, pelo menos para o “mundo”.
Na verdade, o percurso de cada um de nós é, na esmagadora maioria, uma caminhada na areia descoberta pela baixa-mar, cujas pegadas serão apagadas na primeira volta da maré.
Apenas uns poucos (eleitos) deixam obra e memória.
Temos, assim, a maioria, vidas comuns sem epopeias ou glórias, sem decisões sobre a sorte do Império, sem lances fatais, sem direito ao Olimpo.
Se a lucidez e humildade nos libertarem da pretensão de um presente e de um destino grandioso e magnificente, que não temos, estamos em condições de encarar o nosso viver com a valoração adequada e, sobretudo, devotar-lhe o ânimo e a atitude que sustento.
Efectivamente, a chave está, a meu ver, em assumir e cultivar uma atitude de entusiasmo e alegria na vivência de todos os momentos que nos cumpre viver, independentemente da maior ou menor importância que esses tenham para a humanidade, para a civilização, para o mundo ou para quem seja…
Entregarmo-nos plenamente, com “ganas”, com dedicação, com perfeccionismo, ao que sucede, a cada acção que iniciamos, a cada tarefa que desempenhamos, a cada missão que cumprimos, seja ela qual for e para o que for, é viver e animar o tempo.
Se na “casa da partida” de cada “jogo da glória” que jogarmos evitarmos as avaliações da respectiva importância, as comparações com outros jogos, concentrando-nos no momento, no jogo em si, entregando-nos com ânimo, empenho, lealdade e vontade de fazer e fazer bem, com ansiedade de o desfrutarmos, com ilusão, venceremos então o tempo, porque seremos nós a passar por ele e não ele a passar por nós. Estaremos, como disse, a cavalgar nos ponteiros do relógio.
Não é despicienda nem inconsequente esta atitude de concentração, de foco, de sublimação no que acontece agora e em que participemos.
Desde logo, esta atitude constitui um proveitoso e eficaz critério para seleccionarmos o que fazemos, marcarmos a nossa “agenda”, já que, conscientes da nossa entrega e empenho naquilo em que participarmos, recusaremos, por coerência, os eventos insusceptíveis de nos gerarem essa empenhada participação (recusa por objecção de ânimo).
Pela mesma ordem de razões, por essa atitude, aquilo em que participarmos ganha quantitativa e qualitativamente, pois indiferença, ligeireza, negligência, leviandade, não são consentidas na nossa prestação. Detenho-me neste particular, porque o seu efeito prático é imenso. Basta pensarmos no quanto é diferente um relacionamento humano, mesmo circunstancial e aparentemente pouco relevante, quando vivido com a atitude de empenho e dedicação, versus a displicência de ser um passatempo.
A importância de cada acto actual ser o centro do mundo (do meu mundo), com indiferença à sua importância objectiva relativa, é uma via para, e pelo menos, o aperfeiçoamento de cada um, já que é um exercício exigente de entrega, de dádiva aos outros, de partilha, de autenticidade, oportunidade de darmos o melhor e o máximo de nós próprios.
Mas, acima de tudo, esta atitude confere-nos paz, serenidade. Na valoração devida do nosso pequeno mundo e vivência plena desse, perdemos interesse e justificação na constante comparação com os outros, na permanente aferição da nossa importância, do nosso posicionamento no “ranking” e na tormentosa adivinhação do futuro que nos espera, em função do desempenho dos outros.
Cada dia tem em si um potencial de vida imenso, mesmo que preenchido por coisas objectivamente menores, mas essas são as maiores, porque são a nossa vida, e assim devem ser encaradas.

ATM

10 março 2009

História com música – I

Sinto os sonhos
que tocam espessos
as pontas vagarosas dos meus dedos.

De trás do sofá
o disco toca
«My heart is so down»
e a noite pede versos tristes.

Embrulhas as palavras
na sombra dos meus braços,
calas com um beijo os beijos
e adormeces a dizer
que sexta-feira é um dia bom
para estar assim.

JCN

09 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, le 14 Juillet

Georgette, uma das nossas operárias, é uma francesa lindíssima e elegante. Com mais de 1,80m, tem uma pele clara, muito clara, por vezes tão transparente que se lhe vêem as veias. Podia facilmente ter sido modelo, encantando as passerelles com vestidos bizarros de tules transparentes, uns cabelos pretos e longos, um nariz fino, duas maçãs do rosto ligeiramente salientes e um corpo de fazer inveja aos mais sadios. Optara, no entanto, por terminar os seus estudos na Sorbonne, com um trabalho intitulado “A prostituição na epistolografia Portuguesa”, e decidira vir a Portugal fazer aquilo a que chamou, metaforicamente, um estágio. Os contactos com a Dra. Clara tiveram a brevidade só possível a quem se entende à distância: selectividade e ausência de ordenado, que a tarefa era de índole mais social do que sexual.

Os seus clientes, poucos, são quase todos franceses, embora haja portugueses saudosos de um tempo em que o idioma de Proust e de Balzac era língua rainha, falada com fluidez diplomática entre salões de embaixadas. Um tempo que evidenciava um berço da cultura mundial que gerara escritores sem par. Os clientes eram, no fundo, gente que não se tinha habituado a um planeta que usava o inglês como língua franca. No quarto de Georgette a argumentação era demolidora: a estátua da Liberdade era oferta do povo francês e o único esplendor no cinema norte-americano era, de facto, uma frase proferida tendo como som acompanhante o rosto mais bonito da história do cinema e um avião que voaria de Casablanca para Lisboa: we’ll always have Paris.

Numa tentativa de evidenciar, a quem de direito, que a sua passagem por Portugal se revestia de uma roupagem genuína, Georgette decidiu escrever cartas, em português, ao namorado parisiense, um emigrante de segunda geração ainda lembrado da língua de Camões. Pediu, por isso, à Dra. Clara que lhe indicasse alguém que soubesse francês o suficiente para traduzir directamente. Ela ditaria, en français, alguém escreveria, en portugais. Foi-lhe referido o professor Carlos, que lecciona francês numa escola C+S da Costa do Estoril e que já se tinha interessado por ela. É um homem de altura média, cabelo castanho claro, fumador ocasional de cachimbo e que despreza profundamente o império britânico que, diz, gerou canalha e saque no mundo onde se instalou.

O professor Carlos sentou-se numa poltrona do quarto de Georgette enquanto esta, vestida e em circulação permanente, lhe vai ditando cartas ao sabor do improviso e da procura da melhoria contínua:

Meu amor. Saberás tu o vazio em que se tornou o meu mundo com a tua ausência? O sol reveste-se de uma negritude funesta, as flores murcham invadidas por uma tristeza imensa; as andorinhas, que por aqui passavam para me dar novas da tua vida, desapareceram. Portugal sem ti não é nada, não é ninguém. É apenas um país engolido pelas brumas da minha saudade, com o odor do afastamento que se entranha na alma, carcomendo-a de desejo. Redige-me cartas de amor, sussurra-me palavras escritas.

Georgette vai ditando e, no uso de uma característica que lhe permite fazer duas coisas em simultâneo, despe-se ao ritmo das palavras. Quando dá ênfase à expressão o sol perdeu, solta o colchete último que a separa de uma nudez parcial e revelada ao professor de uma escola da Costa do Estoril. Carlos, de seu nome, sente um tremor que lhe perturba a caligrafia, transpira de umas mãos que entende deverem estar ocupadas a calcorrear solo francês cheio de aromas imaginados e despojado da alta costura que o separa do corpo. Quando Georgette menciona a frase que o cliente entende traduzir como carcomendo-a de desejo, já não lhe resta nada, a não ser uma alvura desejosa, umas pernas esguias, um peito que cabe, ele todo, na palma de uma mão. A finalista da Sorbonne está nua, e as veias que se destacam daquela pele clara consomem o professor ao ponto do desvairo.

A francesa interrompe a dicção e sorri numa evidência de convite. Carlos atira com papel, caneta, tradução, roupas incómodas, cachimbos semi-apagados. Abraça-a, beija-a, retém-na nos braços, sente-lhe o corpo todo, imagina-se a possuir la belle France e a ficar impregnado de Victor Hugo, Yourcenar, Sartre, Georgette. Murmura-lhe frases tórridas ao ouvido – em francês, que alguns asseguram ser o idioma do amor. Quer escrever-lhe cartas na pele, tapar cada centímetro de lascívia com erotismos gauleses, revestir-lhe a pele ebúrnea de sensualidades gravadas num itálico único.

- Essa carta de amor é uma falsidade, mon amour. A Georgette só diz mentiras…

A francesa sorri e enrola um caracol na ponta dos dedos finos e longos. O professor segue-lhe uma veia com a ponta dos dedos, e sente que esta artéria é uma espécie de radial que contorna o mundo gaulês.

- São palavras bonitas, Charles. E tudo o que é indiscutivelmente bonito encerra, em si, uma parte de verdade e outra de mentira. N'est-ce pas?

Ao longe, da janela aberta de uma vizinha que tem o hábito de ouvir música alto, ouvem-se melodias de sempre. Georgette oferece-se de novo - e naquele corpo está Paris, o Loire, a moda, o glamour, os perfumes de França - um esplendor de ofertas à voragem ocupante. Tony de Matos, o artista que nunca morreu, vai cantando

Cartas de amor
Quem as não tem
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentidas de alguém
Cartas de amor, andorinhas
Que num vai e vem, levam bem
Saudades minhas
Cartas de amor, quem as não tem

Cumpriu-se mais um dia. À bientôt.

MTS

08 março 2009

Pensamentos dos dias que correm

É decisivo para o seu crescimento saudável que a pessoa, desde muito cedo, se sinta aceite. Aceite não significa um sentimento de indiferença, um tanto me faz, um eu engulo tudo, um como te apetecer sem verdade nem exigência. Aceitar outra pessoa significa dar a essa pessoa a possibilidade de ela estar diante de mim sem que tenha necessidade de se defender, de se mascarar ou de estar na expectativa de aprovação. Significa que pode ser ela própria.

Vasco P. Magalhães, sj

(Pensamento roubado aqui)

2º Domingo da Quaresma

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico. Socorro-me do Evangelho de ontem:

«Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.»

Sei que o tema do perdão já aqui foi apelidado de enfadonho. Sei também que me arrisco, com estes escritos mais militantes, a ver fugir a clientela para blogues mais animados e dedicados aos temas ligeiros da actualidade. Mas, como editor e dono deste estabelecimento, sinto-me no direito a tudo - até ao disparate da minha argumentação, se for esse o caso.

Há muito tempo que estou em crer que há uma dimensão egoísta na forma como se recomenda que as pessoas saiam das suas crises, confusões, tempestades interiores, desajustes com o pequeno mundo em redor: temos de pensar em nós próprios, no nosso bem-estar, no nosso conforto, no nosso equilíbrio, na nossa felicidade, na nossa harmonia. Como se, de alguma forma, o próximo - que é sempre o mais próximo - fosse acessório ou secundário nas prioridades e leis que regem a nossa vida.

O Evangelho de ontem fala do amor aos nossos inimigos e na oração pelos que nos perseguem. Esta atitude de dádiva, de perdão, de tolerância, de compreensão, obriga-nos a sair das nossas certezas, das nossas indiferenças, das nossas raivas e dos nossos azedumes que mascaramos, tantas vezes, com uma frase impactante: preciso de pensar em mim em primeiro lugar, como se um dos nossos defeitos fosse o excesso de dedicação que votamos aos outros.

Talvez não consigamos amar nem rezar pelos que nos maltratam. Mas, se os conseguirmos perceber - uma compreensão activa e não uma indiferença militante - damos um passo importante em direcção ao lado luminoso da vida. Alguém me disse um dia que o perdão era amnésico. Não me parece - talvez seja apenas pacificador, como uma pastilha salvadora que se toma para a azia incómoda.

Termino com a primeira pergunta do sermão do Padre António Vieira de que falei há uma semana: quanto tenho vivido? Porque mais importante do que os anos na nossa vida é a vida nos nossos anos.

JdB

07 março 2009

Doces histórias da nossa gente

Ermelinda saíra de casa dos pais para o Convento de Santa Clara, em Vila Real, onde a incumbiram de ajudar na cozinha e de prestar apoio aos pobres e doentes que a Ordem caridosamente recolhia, até ao dia em que tomaria o hábito e se ordenasse freira. Associada à entrada no convento estava a sua imensa gulodice, que se queria corrigida e afastada. Assim, uma amarga campanha promovida pela Madre Superiora, sob o sloglan “doces, nem vê-los” impediria a rapariga de ter acesso ao açúcar ou aos muitos doces que faziam as irmãs clarissas.

O sofrimento aumentava e Ermelinda padecia mas, com ele, crescia também a fé de suprimir o seu defeito, e foi em Santa Luzia que depositou a esperança da cura, numa infinita devoção à santa dos cegos e dos males da vista. Um dia, orando, e porque tinha ouvido a história do Milagre das Rosas, teve uma visão, a que hoje chamaríamos de “bela ideia”. Usavam-se as papas de linhaça dentro de uns pachos feitos em quadrados de pano, com a pontas dobradas ao centro para segurar a papa, como remédio para chagas, contusões e inchaços. Ora, a noviça, que muitos pachos preparava aos doentes, resolveu, com a ração de açúcar que lhe estava atribuída, fazer uma compota de abóbora e uma massa de farinha que cortou em quadrados, recheou de doce e levou ao forno.

A Superiora, cujas vistas lhe faltavam, bem a viu passar com um tabuleiro. – O que levas? – São pachos, Irmã Madre, para os doentinhos de amanhã... E, na escuridão do seu quarto, cuidando que “do que não se vê não se peca”, Ermelinda saciava a gula, sem suspeitar que os bolinhos ficariam para sempre. Sob o nome de Pitos de Santa Luzia, ainda hoje são oferta obrigatória das raparigas aos noivos (a 13 de Dezembro, festa da Santa), que retribuem com uma gancha de S. Brás, no terceiro dia do mês de Fevereiro. A gancha é um rebuçado feito de açúcar em ponto, em forma de bengala, tal como a que S. Brás segura em uma das mãos.

DaLheGas

06 março 2009

diana of love


[frame de 'the man from london', um filme de béla tarr ]

estávamos em londres naquele dia de setembro
em que foi a enterrar a princesa do povo. não havia
barulho nos passeios, não havia casa aberta
onde pudéssemos comprar qualquer coisa
para merendar na relva de st james ou kensington
gardens: os próprios parques tinham mergulhado
num lutuoso torpor. sentados à sombra, nós os dois

estávamos exactamente a meio da nossa história.
para trás, a lenta cadeia de acasos que culminou
no encontro a desoras sob os astros duma gruta;
pela frente, todos os maus passos que, somados,
haveriam de ditar o nosso fim. mas nessa tarde
de sol e silêncio, enquanto a inglaterra chorava
aquela que na morte teve o nome do amor,

estávamos juntos ainda – e sei que fomos felizes
na cidade mais triste do mundo. era sábado,
uma mulher que passava vendeu-me um ramo
de rosmaninho (for remembrance, dear): largos meses
murchou numa gaveta. e quando dele me desfiz
já não era um memento por diana, mas o último
vestígio de um amor tão morto quanto ela.

rui pires cabral

05 março 2009

A última edição

O “Rocky Mountain News” fechou as portas depois de 149 anos e 311 dias de vida. Era um jornal local, do Colorado, com sede em Denver. Morreu na sexta-feira passada, apenas o caso mais recente de uma longa lista de títulos que não resistiram aos tempos difíceis que correm. Não são novos, os sinais que apontam para a necessidade de mudança da imprensa e do modelo de negócio da imprensa. Em todo o mundo. E gosto desta frase que Juan Giner, fundador e presidente da Innovation, multinacional de consultadoria de media, costuma projectar em corpo gigante na parede: “A alternativa não é um negócio que valoriza os lucros e o bom jornalismo, mas um negócio onde o bom jornalismo é o negócio.”
Deixo aqui o filme “Final Edition” do “Rocky Mountain News”. Vinte e um minutos e alguns segundos de uma história bem contada. Uma história triste. Bom jornalismo.


Final Edition from Matthew Roberts on Vimeo.

Mónica Bello

04 março 2009

Largo da Boa-Hora

Certos dias, sabe-se lá porquê, quando neste meu banco me deixo, entorpeço a razão e acontece escorrerem lágrimas. Choro.
Primeiro, vejo cair na pedra alva da calçada o tímido gotejar lacrimoso, e depois, num ápice, sigo então espantado o meu pranto que se vai avolumando e derramando para o sumidouro público que a toda a calçada serve.
São catadupas de gotas que, impregnadas de mim, caem para o chão indiferente, o qual, não distinguindo as lágrimas da alma do que é chuva dos céus, me protege e acolhe, recolhendo todas no mesmo anonimato da sarjeta, que é vala comum do temporal que vai passando, seja ele humano ou da natureza.
Nestes momentos, o limite da minha auto-repressão é um colocar de mão sobre os olhos, apenas com medo que a possível devassa alheia que possa pressentir, me coíba de ir até ao fim, até ao soluçar, que é o sinal de estar então de facto a chorar, e não a controlar a expressão de mim que tem vontade e direito de acontecer.
Com essas mãos, escondo-me com medo que a vista dos outros me impeça de chorar, por meu pudor ou vergonha, e não porque lute contra esse avassalar de emoções que as lágrimas, magistralmente, unificam e glorificam.
A lágrima é a manifestação maior, mais completa, mais perfeita da sensibilidade humana. A lágrima distingue o ser humano de qualquer outra criação, é a máxima expressão da alma, da essência do ser, do sopro da vida.
No mesmo sentido, o chorar também é um acto de humildade, de reconhecimento da fragilidade e impotência de cada um para o imenso oceano que é a vida, os seus mistérios e voltas.
Chora-se por desgosto, tristeza, infelicidade, incompreensão, vergonha, medo, saudade, frustração, injustiça, raiva, piedade, emoção e até alegria, e por tantas outras razões extremas. Mas, todas estas causas concorrem e despoletam um mesmo processo que vai gerar esse acontecimento singular e único do ser humano.
Na sua modalidade mais extrema e, por isso, mais discreta, silenciosa e oculta, existe o mais pungente dos prantos, que é o dos vencidos da vida, aqueles a quem a desgraça do presente não é sequer mitigada pela esperança do amanhã, e que se limitam a cumprir um calendário de existência coincidente com o tempo de sobrevivência, a qual os próprios, aliás, já não querem.
Na verdade, qualquer daquelas causas, no momento e circunstâncias particulares de cada um, vai esbatendo, esgotando, exaurindo os sistemas de autocontrolo, disfarce, contenção, educação, circunstância, conveniência e demais auto-reguladores, vencendo cada um, até que ganha a emocionalidade e a lágrima acontece.
O choro é, pois, o resultado da acção da emoção/comoção sobre os mecanismos de autocontrolo, de apresentação e representação públicas, que ensinam à repressão, à contenção, à discrição.
Mas, em todos os casos, trata-se sempre de uma vitória do humano sobre a convenção e, por isso, merece o maior respeito e carinho.
Efectivamente, cada lágrima vertida é uma revelação da pessoa humana, é uma vitória da essência sobre a imagem, é uma confissão da condição humana, é um reconhecimento da limitação, é uma nudez.
Com as variações próprias das sensibilidades de cada um, todos fomos mecanizados para criar um dique às emoções que nos contenha as lágrimas que teimam em ser. Quando elas extravasam é sinal que o rio corre, a verdade acontece, o ser humano é livre e foi devolvido à sua condição sensível, permeável aos sentidos e sentimentos, vulnerável a si e aos outros, ao passado, presente e futuro. Isto é, autêntico.
Cada lágrima é um resgate, cada pranto uma salvação.
Há muito que aprendi a lidar com o meu direito ao choro e, por isso, o intróito desta crónica, que pode ter espantado dado eu ser alegre e optimista, esperançoso e “forte”. Mas é precisamente por isso tudo que choro, sem medos e sem vergonha, quando tenho saudades do imenso perdido, ou medo do imenso que posso perder.
Choro no exercício pleno do meu direito a ser filho, irmão, marido, pai, tio, amigo; choro quando tanto depende de tão pouco, e quando já perdi ou perigo tanto por tão pouco.
Agora, se consegui aceitação para a naturalidade da lágrima, sofrida e dorida, vertida pela causa que for, sem mistérios, receios ou vergonhas, queria sair do isolamento do “eu” para o campo relacional, deixando o meu modo de ver as coisas.
Tenho por mim que na vida, entre outros, há uma tristeza capital e um pecado capital.
A tristeza capital é não se chorar sozinho por opção, por vontade própria. Ou seja, não ter quem nos colha as lágrimas no ombro e afago, numa das partilhas maiores que é o consolo. Pobre não é quem nada tem de material. Pobre é quem não tem consolo para o seu pranto, um ombro, um abraço, um afago, uma ternura. A maior e verdadeira solidão não é estar só, é chorar só.
O pecado capital é não merecer, não recolher com desvelo, carinho e consolo a lágrima que alguém nos confiou. O mais rico não é quem tem muitos bens, é aquele que foi eleito para lhe confiarem as suas lágrimas.

ATM

03 março 2009

História de Lisboa II

(FOTOGRAFIA)

O cordão de meias
pendura varandas
entre janelas à sombra.

Pedras roliças
escorregam
nas escamas húmidas
onde o andaime pinga
no pim da lata de atum.

O gato pestaneja
o olho que pôs no pombo
negando o esforço ao salto.

JCN

02 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia da morte de Carlos Gardel

A entrada do cliente foi antecipada por um aroma forte e quente, talvez sândalo. Alguns instantes depois chegou o portador daquele perfume. Aproximou-se do balcão, cumprimentou-me educadamente e estendeu-me um cartão-de-visita onde um itálico de estilo duvidoso identificava o cavalheiro:

Adalberto Barbosa. Tricampeão regional de danças de salão. Estabelecimento próprio. Aulas por marcação, faço domicílios.

O Sr. Barbosa é um homem de estatura média, magro, com um bigode fininho aparado sem erros, e um cabelo liso, cinzento e penteado para trás, composto por um fixador que lhe dá um ligeiríssimo brilho. Quando se aprochegou de mim, pressuroso, assomaram-lhe à boca as palavras com que enceta, provavelmente, a sua aproximação comercial.

- Talvez a menina esteja interessada. Milongas? Quickstep?

Olhando para a minha perna, percebeu que os requisitos para se ser boa dançarina não se cumpririam com a eficácia desejada. Compôs uma madeixa que julgou vaguíssimamente desarrumada e corrigiu:

- Eventualmente uma valsa inglesa…

A Dra. Clara veio à porta do escritório e, com aquela perspicácia sempre surpreendente, não hesitou na indicação:

- Amália: chame a Esperanza, se faz favor.

Esperanza Morales é uma argentina de Pipinas, junto ao Rio de la Plata. Integrou durante alguns anos um clube nocturno em Buenos Aires, uma cave escura inundada do som erótico do bandonéon, de fotografias de Gardel e de fumo de cigarro. Veio para Portugal atrás de um industrial nortenho que a seduziu com promessas de uma casa de praia na Póvoa do Varzim, um negócio emergente no ramo têxtil - e um Ferrari arrumado numa vivenda do Vale do Ave.

Percebeu o logro ao fim de poucos meses, e foi contratada pela Dra. Clara que soube desta rapariga através de uma rede de contactos fortes, seguros e eficazes, uma espécie de olheiros futebolísticos em versão contratação feminina. Esperanza tinha duas lágrimas fortes que lhe escorriam pela cara e uma figura esguia, insinuante e arruivada, além de uma fotografia do seu clube nocturno, debruada a branco e azul-celeste, com uma inscrição saudosa: Mi Buenos Aires Querido…

Esperanza Morales e Adalberto Barbosa dirigiram-se para o quarto, deixando para trás o aroma forte do sândalo e do fixador à base de óleo de castor. Com a porta fechada, o professor de música revela uma dimensão pragmática e optimizadora do dinheiro dispendido. Tem uma hora, como quem ensina o foxtrot a uma iniciada entre as seis e as sete da tarde. Reduz a luz do quarto até ao nível da escuridão lasciva e acende um cigarro, que deixa a consumir lentamente num cinzeiro, enquanto o fumo sobe num bailado voluptuoso.

Esperanza e Adalberto estão nus, integralmente nus, quando das colunas de som se começa a ouvir a voz inconfundível de Carlos Gardel

Acaricia mi ensueño
el suave murmullo
de tu suspirar.
Cómo ríe la vida
si tus ojos negros
me quieren mirar.

Na Fábrica das Ilusões dança-se o tango – dolente, erotizante, lascivo, sem as roupas que tolhem os movimentos e impedem o contacto da pele. Dois corpos desnudos envolvidos no silêncio de quem tem uma ideia superior da dança de salão. Um quarto, uma voz imorredoura, passos estudados e executados com a precisão de quem respira em uníssono.

Quando Gardel, o imortal, canta a estrofe

El día que me quieras
la rosa que engalana
se vestirá de fiesta
con su mejor color

Esperanza deita lágrimas nostálgicas que lhe escorrem pelo peito pequeno e trigueiro; Adalberto Barbosa, o professor que foi tricampeão e faz domicílios, beija-o, como quem oscula uma rosa sem espinhos. Deitam-se depois na cama, onde se amam com um sincronismo intuído, quais parceiros com décadas de pista num rodopiar perfeito. Têm no coração os recuerdos de Pipinas, Buenos Aires, clubes nocturnos, taças que se erguem na vitória de mais um campeonato regional.

- O que é para ti o tango, Esperanza?

- El tango, Adalberto de mi corazón, es un pensamiento triste que se baila.

O mestre da valsa, do jive, da rumba, acende um cigarro e retém uma emoção. A definição que já conhecia, dita por aquela operária espojada numa nudez vertiginosa e sul-americana, ganha foros comoventes. Ao seu lado, Esperanza sonha com Abasto, o bairro onde morou Gardel, e suspira a lonjura. Sentado na cama, o professor solta uma baforada de fumo e cantarola num dueto impossível com o grande mestre do tango:

El día que me quieras
no habrá más que armonía

Quando passa por mim na recepção oferece um sorriso amável, sincero, aberto sem cerimónia por debaixo de um bigode fininho e aparado sem erros.

- Eventualmente uma valsa inglesa, menina Amália…

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

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