30 junho 2009

Músicas (e sobretudo letras) de todos os tempos

História à chegada

Se o amor nos visse assim,
se agora, quando chegássemos,
à espera na estação,
entre beijos, abraços e apitos,
estivesse o amor
a ver-nos assim chegar,
cansados,
sobraçando malas,
mão na mão
e braço dado,
se, de repente, nos visse assim o amor,
que farias tu
com as tuas asas?

JCN

29 junho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de S. Bernardo de Mentone, padroeiro dos alpinistas.

Relembro páginas do meu diário:

Georgette, uma das nossas operárias, é uma francesa lindíssima e elegante. Com mais de 1,80m, tem uma pele clara, muito clara, por vezes tão transparente que se lhe vêem as veias. Podia facilmente ter sido modelo, encantando as passerelles com vestidos bizarros de tules transparentes, uns cabelos pretos e longos, um nariz fino, duas maçãs do rosto ligeiramente salientes e um corpo de fazer inveja aos mais sadios. Optara, no entanto, por terminar os seus estudos na Sorbonne com um trabalho intitulado “A prostituição na epistolografia Portuguesa”, e decidira vir a Portugal fazer aquilo a que chamou, metaforicamente, um estágio.

Ao início mostrou-se algo relutante em diversificar a clientela mas, fosse por questões económicas ou desejo de levar a sua aventura para lá do Cabo das Tormentas, o facto é que foi preenchendo o seu carnet com marcações variadas. Confiava em absoluto na Dra. Clara para lhe escolher o cliente mais interessante – ou o mais aventuroso.

- Tu sais, Amalie, l’ aventure c’est tout. Il n’y a rien que celá. Et je crois que le mot aventure est français...

Recebeu o cavalheiro ao fim da noite de uma 4ªfeira gelada e chuvosa, filha de uma meteorologia própria da geografia montanhosa. Encostou-se ao meu balcão – fui confrontada, mais uma vez, com a sua altura - e, num português ainda afrancesado, revirando uns olhos de gozo e espanto, contou-me a sua hora.

- Sabes, Amália, o Sr. Marcolino é um homem extraordinário. Pediu-me para me deitar e deixar que fosse ele a agir sempre. Assim fiz. Recostei-me vestida na cama e fechei os olhos. O cliente pediu-me que não abandonasse nunca aquela posição. Acedi, sem saber se era uma espécie de fetiche, ou qualquer coisa do género. O Sr. Marcolino beijou-me longamente, ao início com ternura, avançando depois num crescendo de erotismo. Entreabriu-me os lábios e ali se demorou uma eternidade. E que bem que ele beijava... Oh, la la!

Seguidamente começou a despir-me. Peça a peça, fecho a fecho, botão a botão. Com vagar, como se não houvesse necessidade de cumprir uma hora de marcação, como um alpinista que sabe que a montanha está ali, e que só o prazer da lentidão lhe proporcionará o gozo final. Volta e meia perguntava-lhe se ele não queria que eu fizesse alguma coisa. Respondeu-me sempre que não, que o chefe da equipa era ele (e ria, quando dizia isto), que ele faria tudo, e que eu o seguisse, confiante da sua experiência de escalador. Sorria, e era mais uma peça que desaparecia; piscava os olhos e era uma mão a percorrer-me o corpo, encontrando nas neves altas, em que eu me tornei metaforicamente, um prazer ilimitado e próprio.

Percebi que os pés lhe diziam alguma coisa, porque foi lá que o Sr. Marcolino iniciou aquela subida de prazer. Massajou-os, beijou-os, sei lá mais o que fez. Depois foi por ali acima, lentamente, muito lentamente, como quem sobe a um pico de montanha consciente do cansaço - ou da estratégia. Demorou-se em todos os pontos, estabelecendo uma espécie de campos intermédios antes da arrancada final. Assim se passaram 50 minutos, porque, de facto, sempre tenho mais de 1,80 m, tu comprends… Beijos, afagos, mãos, língua, dedos. Uma técnica irrepreensível ao serviço do erotismo, da sensualidade, da atenção ao pormenor. Um verdadeiro alpinista com quilómetros de prazer nas suas botas fiáveis.

Os últimos 10 minutos… Enfim, acho que não preciso descrever-te o que foram, pois não? O Sr. Marcolino tinha terminado a sua escalada e respirava um oxigénio puro, abundante, revigorante, cravando o seu estandarte no ponto mais alto. Sentou-se ao meu lado na cama e voltou a mirar-me de alto a baixo, um verdadeiro sherpa que atenta na cordilheira que acaba de transpor. E sorriu.

Ai, Amalie, Amalie…

Georgette regressou ao quarto derramando, do alto de uma altura verdadeiramente obscena, uma elegância que esmagava. Da obra em frente, que teima em persistir até às calendas - ou até às próximas eleições - as melodias de sempre davam um ar da sua graça.

Lisboa não sejas francesa
Com toda a certeza
Não vais ser feliz
Lisboa, que idéia daninha
Vaidosa, alfacinha,
Casar com Paris
Lisboa, tens cá namorados
Que dizem, coitados,
Com as almas na voz
Lisboa, não sejas francesa
Tu és portuguesa
Tu és só pra nós

Cumpriu-se mais um dia. Mas é importante referir que o Sr. Marcolino, alpinista de uma montanha chamada Georgette, é anão.

MTS

28 junho 2009

Senhora da Boa Nova

Hoje, mas há uma semana, rezava-se missa no Santuário da Boa Nova, no Estoril, com a presença do Cardeal Patriarca. Durante as duas horas que durou a cerimónia pensamos em tudo. Em mim germinou a carta que escrevi ao prior, e de que partilho a maior parte.

Sentei-me Domingo, eram 10.40h, na Igreja da Senhora da Boa Nova. Ocupei, com o meu filho Segismundo, dois lugares anónimos no meio de muita gente. Neste dia especial não tinha nenhuma responsabilidade a não ser rezar pelos outros, pela nossa Igreja, pela força e discernimento que não nos devem abandonar nunca. Ali, frente a uma parede branca e nua, onde Nossa Senhora velava por nós, dei por mim a pensar. Olhei para Cristo crucificado e confirmei uma ideia importante: onde outros vêem uma morte dolorosa, alguns vislumbram um amor limite. E dei por mim a pensar. E à medida que olhava para os lados, para a frente e para trás, e que via uma multidão de gente com a qual nunca me teria cruzado, dava por mim a pensar que, de facto, há coisas que são maiores do que nós. Durante duas horas fui um fiel desconhecido no meio de fiéis desconhecidos. Durante duas horas ninguém me reconheceu como o homem que lê, que acolita, que ajuda a distribuir a comunhão. É uma perspectiva diferente, mas é uma perspectiva importante.

Ao olhar para o altar, reconheci dois dos três priores de Santo António do Estoril que tive o gosto de conhecer. Ambos, à sua maneira, reforçaram a minha fé e ajudaram-me a repetir em voz alta, mesmo que fosse para o meu interior, palavras-chave na nossa deambulação pela Terra: tolerância, serviço, dedicação, altruísmo, próximo, fidelidade. Serei um mau aluno, seguramente, e é por isso que continuo a repetir as palavras… Talvez um dia venha a conhecer um quarto prior, e um quinto, frutos do dinamismo próprio da Igreja. Olharei para todos com a certeza de que acrescentaram valor a algo que nasceu antes de nós e morrerá muito depois. Tão depois que não conseguimos vislumbrar.

Do anonimato daquele meu lugar comecei por mim, olhei em volta, e vi o protagonismo, a necessidade de evidência, o desejo de poder, a pedra que estamos prontos a atirar ao outro. Mas, do anonimato daquele lugar, vi também a entrega a uma causa, a vontade de deixar obra, o anseio de um caminho de melhoria. No fundo, do anonimato daquele meu lugar olhei em volta e vi a igreja, com todas as suas fraquezas, mas com todas as suas vocações de santidade. E senti-me bem porque, de facto, encerro em mim, também, o melhor e o pior. E é esta Igreja, imperfeita e humana, que me tem ajudado. E é a esta Igreja, incompleta e esforçada, que eu agradeço aquilo que sei agradecer, mais o resto, tanto, que nem eu sei exprimir.

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico. Talvez o início do Evangelho de hoje (de que copio dois excertos) fosse a minha leitura preferida e esperançada há oito anos. Agora, olho para trás e vejo que há outros milagres, porque não tive a sorte de Jairo, um dos chefes da sinagoga. Há o espanto e acontecimentos relevantes a marcarem a minha caminhada de lá para cá.

Naquele tempo,
depois de Jesus ter atravessado de barco
para a outra margem do lago,
reuniu-se grande multidão à sua volta,
e Ele deteve-Se à beira-mar.
Chegou então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo.
Ao ver Jesus, caiu a seus pés
e suplicou-Lhe com insistência:
«A minha filha está a morrer.
Vem impor-lhe as mãos,
para que se salve e viva».

(...)
***
(...)
Quando chegaram a casa do chefe da sinagoga,
Jesus encontrou grande alvoroço,
com gente que chorava e gritava.
Ao entrar, perguntou-lhes:
«Porquê todo este alarido e tantas lamentações?
A menina não morreu; está a dormir».

De facto, há crianças que não morreram, adormeceram algures mas mantêm-se vigilantes, atentas, presentes, como uma luz que nos ilumina sempre, mesmo na maior das negritudes. Mesmo nessa, ou sobretudo nessa.

JdB

27 junho 2009

Informação

Tal como já tinha sido anunciado, aos sábados escrevo no blog Porta do Vento. Se tiverem paciência vão lá visitar-me.

JdB

Amanhã é dia de Feira


Na pequena freguesia de São Pedro de Sintra, a Feira realiza-se ao segundo e quarto domingos de cada mês. Os devotos são muitos, os feirantes sempre os mesmos e os produtos da melhor categoria. Nada como domingar, feirando.
“Quem não sabe é como quem não vê.” Aplica-se muito na vida. No caso da feira, quem não vê, é que nunca há-de saber. Nem que leia, nem que lhe contem, nunca saberá o gosto que é sentir o prenúncio deste acontecimento. As três primeiras horas da manhã nada têm a ver com as restantes da coisa, porque a partir do meio-dia, tudo muda.
Nove horas da manhã. Não há trânsito. Frente ao “Ramalhão” a polícia está serena. Alguns carros preenchem a alameda de acesso a São Pedro mas há espaço para andar e nem se dá por ser dia de feira, confinada que está ao Largo D. Fernando II, lá em cima ao pé da curva. As famosas e bonitas antiguidades do Largo do Fetal ainda estão fechadas (muitas nem abrem neste dia), os cafés também, o ar corre fresco, o chão limpíssimo e a nuvem cinzenta detém-se na torre do Palácio da Pena. Por uma pena... ou por ordem do Padroeiro. São Pedro é muitas vezes o último lugar ensolarado a Este da bela Sintra. Principalmente nos domingos de feira, como convém à “geral”.
No alto da Praça o frenesim é maior: mais pernas, cabeças e burburinho. Cheiros fortes, frescos e já esquecidos injectam no ar energias capazes de chamar a freguesia. Para trás ficou a evidência aromática da barraca das pipocas, enfeitada com malinhas de plástico, cada uma sua cor, atestadas de “pipoca de baunilha”, “pipoca de morango”… Ah, novidades: malinhas, baunilha e morago! À direita, frente ao portão da Quinta D. Diniz, há poucos clientes para as árvores de fruto e de jardim. Pelo contrário, as duas mulheres que lado a lado vendem a horta já criada, não têm mãos a medir. O cebolo está na berra. Os molhos voam para dentro das sacas e é só receber, receber, despachar, despachar. Vale a pena apreciar a maneira como se protegem as raízes recém-nascidas no alfobre, para plantar. Seja alface, tomate, pimento, manjerico, couve coração ou portuguesa, cravos ou amores perfeitos, ligam-se com fetos, couves velhas ou mesmo erva daninha, apertados num cordel, para manter a humidade. Dá que fazer esta vinda à feira prò render da produção. É bom, ó “dona”? É tudo bom, eu esto-lh’a dizer: quem compra uma vez, quer vir cá mais vezes. Um euro o molho. O sector hortícola é o mais efémero do mercado. Em duas, três horas, foi-se quase tudo. Já as árvores e as plantas, os prontos a consumir – legumes, enchidos, queijos, ovos, pão, bolos “saloios”, sementes, frutos, mel, vinho e azeite – e os animais, saem lentamente, ao correr das horas. A componente alimentícia da feira, que é sem dúvida a mais vincada e importante desta praça, dá-se durante a manhã. Quem vem a ela, vem cedo, para não arriscar ir mal servido.
Sem bons ou maus momentos vão trabalhando os três fornos do pão com chouriço que irradiam lá do canto do rossio. Pão quente, as almas gostam sempre. “Papa pãozinho, tem chixa”, ouve-se dizer às crianças. Para os turistas, radiantes, este é um lugar de fascínio absoluto. E aquelas mulheres amassam, botam chouriço, deitam ao forno, atendem a freguesia, é um regalo. Euro e meio cada, um riso, um obrigada e siga. Papo cheio, estômago às voltas com o enchido de fraca rês, vai-se calçada abaixo com sete olhos. Se eu quisesse enumerar objectos interessantes... Jesus, muito há que comprar. Neste tempo o recinto é uma sombra só. Os plátanos estão em bom vigor vegetativo. Nos domingos quentes ser feirante é duro e as crianças pequenas padecem nas horas longas em que os grandes vendem, cirandam e trazem que comer. Dormir entre as “t-shirts”, o pregão e os fregueses – nada vence aqueles bebés.
Este mercado acontece aqui desde o século XII, com origem nos tempos da “Gafaria”, o hospital dos leprosos que funcionou em São Pedro. Era prática corrente proceder-se à venda ao público dos haveres dos doentes, na sua maioria roupas, como contrapartida pelo internamento e apoio dado pela instituição. Aproveitando uma via movimentada junto à Gafaria, ao pequeno mercado dos leprosos juntaram-se outros comerciantes, e a sua feição alargou-se, resultando nesta que é há muito a feira mais característica dos arredores de Lisboa. Além de roupas parolas, sapatos que se vêem à légua, imitações bestiais de marcas famosas, restos de colecções ao preço da chuva, utensílios para a casa, tapeçaria, ferramentas, antiguidades e louças, ainda há galinhas, patos, perus, pássaros e coelhos. E novos feirantes: chineses, indianos e andinos sul-americanos. Trazem quinquilharia e engenhocas, tapeçaria e electrodomésticos, artesanato de diferentes materiais e música tradicional, no caso dos andinos, que trajam sempre as suas peles de franjas sobre tecidos de tear a cores garridas que sobressaem nos cabelos pretos, lisos e compridos. É a honesta sobrevivência dos povos emigrantes no nosso País.
A freguesia de São Pedro de Penaferrim é praticamente um arrabalde de Sintra. Vê o Palácio da Pena, goza o ar da serra, tem casas lindas e preservadas, uma bonita igreja do século XV, muitos restaurantes onde os pratos regionais abundam, lojas com coisas espantosas e pastelarias bem decoradas, com os melhores bolos do mundo para uma clientela de anos, assídua e amiga íntima.
Erguei-vos cedo, bloyeurs, e ide, depois de lerdes o Evangelho do JdB, é claro.

DaLheGas

26 junho 2009

barcelona 2 - j.b. football club 0

que a vida é imprestável e a poesia para nada serve, já ambos o sabíamos.
conhecíamos de cor os fados todos - à cabeça, os mais sombrios -
e Fátima ficara lá para trás, havia já muito tempo.
agarrados ao futebol e à língua franca em que agora escrevinhamos
estes versos - torpes, brancos-detergente, pobres -
nada nos preparara, contudo, para essa quase noite de cinzas.
de um lado, a poderosa armada britânica, ostentando o título
(todos os títulos passados e futuros - 'in my dreams' - e mais alguns);
do outro, a esquadra 'contender', capitaneada por um rapaz baixo,
promitente herdeiro alvi-celeste dessoutro deus, Dieguito de seu nome.
sentados desajeitadamente no sofá, a luz da tarde a esvair-se,
misturávamos Português, Inglês e Alemão, numa cacofonia irrepreensível
(semiótica pura e sinal dos tempos - Erasmus na Torre de Babel).
na televisão, o nosso príncipe quase perfeito afundava-se,
com aquele espanto próprio dos que se julgam omnipotentes
- o príncipe e toda a sua ínclita e mui britânica geração.
disfarçavas, amigo meu, o melhor que sabias, o melhor que podias,
o abismo que me abraçava, os fantasmas nas vidraças, os abutres à espreita.
por entre minis mal bebidas, o sabor amargo das minhas lágrimas
era já, como dizer, o tom dominante, anunciando impiedosamente
mais uma balada triste, daquelas onde se misturam enxofre, melancolia,
um eterno desespero, todo o desamor do mundo.
noventa minutos, sem direito a prolongamento ou penalties,
uma derrota sem redenção (se fora boxe, dir-se-ia por knock-out),
a súbita máscara da dor, irmanando, em cores baças,
aqueles onze guerreiros do apocalipse moderno, em calções,
tu, meu amigo, fazendo das tripas coração por mim (eu sei que sim),
e eu, perdido em campo, perdida mais uma vez a vida feliz,
chorando a distância obscena que vai das honrarias ferrugentas
ao ferrete interno de nos sabermos eternos 'has been'.

morreste-me durante uma partida de futebol, meu amor.


gi

25 junho 2009

A História de um Chapéu (parte II)

Foi aí que comecei a reparar mais neste estranho chapéu... Era como se ele tivesse uma vida própria. Saltava de pessoa para pessoa com uma graça e precisão que me deu que pensar... Comecei a dar atenção quando o padrinho de casamento resolveu fazer um brinde. Pôs-se de pé, arrancou o chapéu ao noivo e pousando-o na cabeça pediu a atenção de todos. O padrinho era um tipo engraçado. Vistaço, era mesmo o estéreotipo do eterno solteirão. De copo na mão falava sobre tudo o que tinha feito com o noivo, de todas as suas conquistas e de todas aquelas coisas que se dizem nestas alturas para nos envergonhar. Sentadas na ponta da mesa estavam um grupo de raparigas que lhe faziam olhinhos. Já tinha namorado todas. E hoje estava confiante que arranjaria uma diferente. Mas apesar de todas as mulheres, bebedeiras, aventuras e histórias que tinha para contar este padrinho estava muito infeliz. Porque é que não podia ser ele ali sentado a ouvir os seus amigos a contar histórias sobre ele? Porque é que não podia ser ele que finalmente encontrava as mulher da sua vida? Naaa... Estava muito melhor assim. Sem mulher e preocupações. Em vez de uma que o prendia, tinha várias diferentes que lutavam por ele. Isso sim era vida...

Nisto levanta-se o sogro. E também ele tira o chapéu para si e coloca-o na cabeça. O sogro naqueles longos discursos enfadonhos e cheios de significado que só os sogros sabem fazer, falava muito sobre o seu eterno amor com a sua mulher. O que é curioso é que tanto ele como a sua mulher eram os dois infelizes. Aparentemente tinham tudo. Uma filha bonita que agora se casava, o amor um do outro. De que mais precisavam? Secretamento ambos desejavam espaço para respirar. Descanso um do outro. Mas o medo de se perderem era tanto que se agarravam com unhas e dentes e não se largavam à coisa de 25 anos... Já nem sequer era um casamento saudável.

Depois do seu discurso o sogro arrastou a sua enorme barriga de volta para o seu lugar e deixou o chapéu do Avô Fausto em cima da mesa. Nisto aparece um sujeito com um ar esquisito e põe o chapéu na cabeça. Avança para o microfone e também ele começa a falar. Era um dos primos mais afastados. Daqueles que nunca ninguém se lembra bem do nome. Nem ele próprio sabia muito bem o que estava ali a fazer... Mas a sua mãe, coitadinha estava doente em casa, pedira-lhe para ler umas palavritas. E assim lá foi ele. Meio encolhido e envergonhado, sempre a sentir-se um bocado a mais. Verdade seja dita, ninguém ligou nenhuma ao que tinha a dizer. Mas ele fez a vontade de sua mãe, e meio desorientado tentou encontrar outra vez o caminho de volta para a sua mesa.

E assim se passou o jantar, os brindes e o bolo. Estava na hora da dança. O chapéu continuava a saltar animadamente de convidado para convidado. Até já havia um primo da noiva que se declarava à prima do noivo com o chapéu na cabeça. Ai se o Avô tivesse visto isto... Ele de joelhos muito corado, dizia-lhe o quanto gostava dela. E para seu próprio espanto ela pregou-lhe um beijo e arrastou-o para a pista de dança. Era a última vez que ele se declararia a alguém. Mal sabia na altura que ela era a mulher da sua vida. Que iria casar e ter uma batelada de crianças com ela. Mas era normal. Já estava a entrar na idade de arranjar alguém a sério...

(continua)

BG

24 junho 2009

Músicas dos dias que correm

Poema para o dia de S. joão

Noite de São João

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

(Alberto Caeiro)

Explicação

O Largo da Boa-Hora estará hoje fechado, reabrindo na próxima semana. Tentaremos colmatar esta falha entretendo os nossos leitores com o possível, porque o desejável, de facto, só voltará de hoje a oito dias.
Sejam felizes, apesar deste contratempo...
JdB

23 junho 2009

História de um sopro

Cerrei as mãos
uma contra a outra,
recolhi os pingos perdidos
perfeitamente redondos
de fazerem reflexos
na luz espalhada
pelo teu corpo
e reguei num sopro
o Deus que em ti reconheci.

JCN

22 junho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de todos os encontros.

Pouco passava do meio-dia quando a Joana Maria me veio entregar uma carta para ser posta no correio.

- Importas-te, Amália? É para o meu Pai...

Naquele preciso instante entrou o carteiro com uma carta para a Joana Maria.

- Sabes, Amália? É do meu Pai...

A minha espinha foi percorrida por um frio. O meu balcão, onde recebo clientes e os entrego nas mãos das raparigas para horas de volúpia e luxúria, foi palco de uma coincidência extraordinária – duas cartas entre um pai e uma filha, mandadas e recebidas sem que receptor e emissor, que eram, em simultâneo, receptor e emissor, o soubessem. Tremi e circulei os envelopes, como quem circula energias de efeitos desconhecidos e imprevisíveis.

Meu querido Pai,

Dificilmente poderei explicar o choque que foi ver-te nesta casa. Mais a mais sabendo que não vinhas à procura de prazer, mas de mim. Não querias uma rapariga, não te querias divertir durante uma hora entregando-te aos prazeres do sexo com uma aparente desconhecida. Querias, apenas, ver a tua filha, enfrentar o demónio que é constatar a vida dupla de quem tem o nosso sangue, de alguém por quem estamos dispostos enfrentar todos os inimigos.

Durante uma hora choraste copiosamente no meu quarto, depois de teres rondado uns olhos espantados pela cama, pela cómoda, pelos quadros, pela música, como quem entra num mundo que tem tanto de extraordinário como de mau. Eu encostei-me a um canto, enroscada e transida, como um cão que é vítima de maus tratos que ninguém lhe infligiu, como um desgraçado que se envergonha de um insulto que ninguém lhe dirigiu. Nunca na minha vida me senti tão mal, tão conspurcada, mesmo sabendo que há pessoas que dignificam o trabalho que executam, por mais baixo que pareça. A tua presença no meu quarto foi como um espelho onde revi toda a minha iniquidade – não tanto por aquilo que faço, mas pela desilusão que fui para ti.

Já hoje pedi para falar com a Dra. Clara, para manifestar a minha vontade de sair desta casa. Não conseguirei estar aqui nem mais um dia, não saberei receber nem mais um cliente. Não sei para onde vou, mas estou certa de que encontrarei quem me albergue durante algum tempo. Perceberás que tenho dificuldade em enfrentar-te nos tempos mais próximos. Como te olharei, tu que estavas disposto a tudo pela minha felicidade, depois de te ter visto dobrado num choro confrangedor, num luto prematuro por uma filha viva? A vergonha e o amor afastar-me-ão da casa que foi minha e que espero volte a ser quando tivermos distância suficiente.

Um beijo da tua filha que te ama mais do que tudo,

Joana Maria

***

Minha querida Joana Maria, querida filha,

Abriu-se no meu coração de Pai uma ferida do tamanho do mundo. Todo eu urrei por dentro, como um lobo raivoso, ou como uma mãe a quem arrancam as crias. Tudo dentro de mim se desfez na visão de uma filha linda, com um futuro brilhante pela frente, entregue a uma indignidade. Ver-te naquela casa, naquela vida, com aquelas raparigas, despedaçou-me a alma, e tudo me passou pela cabeça. Enquanto eu chorava de raiva e dor só me apeteceu bater-te, castigar-te por uma coisa que não se faz a um pai que se deu na totalidade a quem era carne da sua carne.

Vi-te enroscada a um canto, esmagada pela vergonha de me encontrares, sem saberes, ao princípio, se aparecia como um cliente ou como um pai. Parecias um cão acossado, um farrapo de mulher, um quadro de miséria. Fui, naquela hora, o lugar geométrico da cólera, do desespero, da irritação, da desonra. Quis escorraçar-te da face da Terra, ver-te morta, longe da minha vista, caída numa valeta a subsistir da caridade alheia. Quando me despedi da D. Amália, e revelei o nosso parentesco, já não era um homem, mas um farrapo; já não era teu pai, mas alguém a quem arrancaram o fio de dignidade que nos permite manter sempre uma coluna direita. Quando me despedi dela, garanto-te, tudo me era indiferente na vida – até a forma de morrer naquele instante.

Pensei muito no assunto, nas tuas opções, no que te empurrou para essa escolha. Mais do que questionar ou criticar, forcei-me a pensar onde tinha eu falhado, qual tinha sido o gesto, a palavra, a frase, o olhar que tinham fechado uma porta entre nós para se abrir a porta da ignomínia. Estes exercícios são terríveis, mas libertadores. É como se algo dentro de nós nos empurrasse teimosamente para a luz, quando o nosso íntimo solicita a escuridão que se alimenta da danação. Vou imaginar que fiz uma espécie de desintoxicação, ao impor, ao meu próprio corpo, o desaparecimento das drogas que corroem o espírito e contaminam o coração.

Eis-me aqui, Joana Maria, o teu pai que te deseja mais do que tudo. O meu coração morre enquanto te imaginar nessa casa. Mas no dia em que entenderes sair, encontrarás um par de braços que se abrem para ti, um coração que rejuvenesce de alegria, uns olhos que chorarão num misto de soluço e riso, um amor que é eterno e tão incondicional quanto permite a minha fraqueza.

Perdoo-te, na esperança de que serei perdoado.

Um beijo muito grande do teu Pai

Cumpriu-se mais um dia, emoldurado por esta certeza do Amor e do Perdão.

MTS

21 junho 2009

Palavras escolhidas

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Olho para o Evangelho de hoje e, tal como o faço semanalmente, procuro palavras ou expressões chave, aquelas que me ficarão na memória depois de tudo o resto se ter esvaído. Ressalto três, que sublinhei no texto. Porquê? Porque ao longo da minha vida, sobretudo dos últimos 8 anos, foram sensações que me assaltaram: as tormentas pelas quais passei, fossem ou não responsabilidade minha; a certeza de que Alguêm lá em cima estaria sempre disposto a enfrentar comigo essas tempestades, só que nem sempre me terei lembrado de O chamar; a certeza de que a foi mais do que importante, foi uma verdadeira tábua de salvação em momentos da minha existência. Não para resolver os problemas, mas para me dar força e discernimento.

Reza-se, daqui a pouco mais de meia hora, a primeira missa na Igreja da Senhora da Boa Nova, no Estoril. Mesmo que seja um lugar-comum, gosto de citar Pessoa: Deus quer, o Homem sonha, a Obra Nasce.

Um bom Domingo para os que me lêem.


EVANGELHO – Mc 4,35-41
Naquele dia, ao cair da tarde,
Jesus disse aos seus discípulos:
«Passemos à outra margem do lago».
Eles deixaram a multidão
e levaram Jesus consigo na barca em que estava sentado.
Iam com Ele outras embarcações.
Levantou-se então uma grande tormenta
e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água.
Jesus, à popa, dormia com a cabeça numa almofada.
Eles acordaram-n’O e disseram:
«Mestre, não Te importas que pereçamos?»
Jesus levantou-Se,
falou ao vento imperiosamente e disse ao mar:
«Cala-te e está quieto».
O vento cessou e fez-se grande bonança.
Depois disse aos discípulos:
«Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé
Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros:
«Quem é este homem,
que até o vento e o mar Lhe obedecem?»

20 junho 2009

Noite, noite...

Como eu hoje te esperei. Como queria as tuas horas, tão diferentes das dos dias. Sabes lá o que elas são. Nem sequer te vou contar. Esperei tanto que viesses, que me visses. Vês-me, noite? Eu aqui à tua beira, debaixo do teu nariz? Pára de me atirar estrelas, que me estragas o vestido. Gostas dele, noite? Que beleza tens trazido. Já ontem te calculei. Toda a semana desconfiei. Sabia. Era hoje que te via. Até o passei a ferro. Noite, noite, fica noite até ser dia. Com as tuas horas sem pressa, sem que nada lhes aconteça. Lentas, mudas, belas, surdas. És um presente do céu. O melhor que alguém me deu. Sabes noite, o que eu gostava? Ao teu colo voava, no prenúncio da aurora. Sim. De ir aos lugares onde te metes. Por aí fora. Saudades? De noite não se é o mesmo. Pensei que sabias isso. Na noite, noite, pouco ou nada quer o dia.

DaLheGas

18 junho 2009

A História de um Chapéu (parte I)

Era uma vez um chapéu. Um chapéu normal. Preto com abas largas. Não era tão imponente como uma cartola, mas também tinha mais carácter que um simples chapéu de côco. Este chapéu estava gasto e usado. Já tinha visto muitos anos e passado por muitas cabeças. Já estava um bocadinho desbotado e as suas costuras já tinham visto melhores dias. É preciso ver que este chapéu já tinha muitos anos. Já tinha sido testemunha de revoluções e ditaduras, de casamentos e divórcios. Já tinha passado por gerações e gerações que via todos os dias caminharem para o seu fim. Pode se dizer que este chapéu teria muitas coisas para contar. Oxalá os chapéus falassem. Teria tantas histórias... E que histórias! Histórias de coragem, amor e tristeza. Histórias para rir e histórias mais sérias. Histórias boas e histórias menos boas... Mas esta história não é sobre todas essas histórias. Esta história é a história de um chapéu. Um chapéu de aba preta, muito velho e usado.

Este chapéu, o chapéu do Avô Fausto como lhe chamavam os netos, estava na família há anos e anos sem fim. Já ninguém se lembrava bem de onde vinha, nem como tinha vindo. Mas o que todos sabiam era que o Avô Fausto não ia a lado nenhum sem ele. Passava os dias sempre com o seu chapéu. Os seus amigos e filhos até gozavam com ele. Mas ele não queria saber. Gostava do chapéu e pronto! Era prático, confortável, dava com tudo e não era como esses chapéus novos, muito pomposos e cheios de pretensiosismos. Enfim, o Avô e o seu chapéu eram famosos entre a família e amigos.

O Avô, tal como o seu chapéu, já estava muito velhinho. O tempo foi passando e passando até que chegou a sua hora. O Avô partiu mas o chapéu ficou. Ao fim de tantos anos o chápeu era atirado para dentro de uma caixa de cartão como se de uma simples peça de roupa se tratasse. Fechado num armário não voltaria a ver a luz do dia por muitos e muitos anos.

E passaram-se os anos. Primeiro um, depois outro, finalmente já tinham passado 20 anos quando o armário foi aberto. Qual não foi o espanto de todos quando ao abrirem uma caixa velha e coberta de pó encontraram lá dentro o chapéu! Todos se lembravam tão bem. Nessa noite sentaram-se à mesa (com o chapéu), a contar histórias sobre o Avô. Tantas contaram que os mais novos adormeceram à mesa. E foi aí que o neto mais velho, que já tinha casamento marcado, pediu aos pais para guardar o chapéu do Avô de quem gostava muito. Todos concordaram...

Qual não foi o espanto de toda a gente quando este neto brincalhão apareceu no seu próprio casamento com o chapéu do Avô na cabeça! Todos os primos se riram, todos os tios gostaram, todos os convidados comentaram e até aquela tia mais velhinha e taralhoca o confundiu com o seu Avô. Não podia ter feito maior sucesso. Depois do casório o chapéu acompanhou-o para a festa. E foi aí que ele brilhou. Foi a alma da festa! Tudo e todos queriam experimentar o chapéu do Avô Fausto. Dançavam com ele, comiam com ele, houve mesmo um parzinho que tentou fugir com o chapéu para um cantinho mais escuro.

(continua)

BG

Explicação que peca por tardia

Quando iniciei esta nova fase do Adeus, até ao meu regresso... as 5ªs feiras eram pertença da Mónica Bello. Por motivos que se prendem, sobretudo, com a sua vida profissional do momento, a Mónica não tem podido colaborar. Assim, decidi criar uma espécie de dia de fado vadio ou, na gíria utilizada em bares com música ao vivo (e que o meu filho me ensinou) open mic night.

Até que a bloguista desaparecida entenda voltar, este dia continuará a ser aberto a quem se oferece, ou que eu convido. É gente com gosto pela escrita, gente nova (já tivemos uma jovem que termina agora o 9º ano), gente com experiência de vida. No fundo, gente que sente este desafio do alinhamento das palavras e nem sempre tem palco onde representar.

Tal como disse relativamente a outro blogue, o Adeus... é como um albergue espanhol. São todos bem-vindos desde que tragam farnel.

JdB

17 junho 2009

Largo da Boa-Hora

Como vem sucedendo em todos os anos, passei os feriados de Junho numa estância balnear a desfrutar a família, os amigos, a praia, o sol e o mar.
Dias magníficos de descanso, distracção e renovação.
Mas o que me inspira esta crónica não é a exaltação da “vida de praia”, que é essência de mim, mas uma constatação que me surpreendeu e que, de certa forma, me perturbou.
Ao longo da vida, estes lugares de férias, frequentados sazonalmente com fidelidade, adquiriram uma “mística” própria e exclusiva que os identificava e distinguia dos outros congéneres.
O lugar de veraneio que ao longo dos anos fosse o nosso, era percepcionado, sentido e vivido como um espaço “próprio”, constitutivo da nossa entidade, integrante do nosso mundo. A universalidade desse local formava um todo que nos pertencia e ao qual nós pertencíamos, numa relação de posse e propriedade, constantemente afirmada e confirmada ao longo dos anos.
Com o “sítio” eleito estabelecia-se uma relação de essência, de intimidade, de identificação, que o tornava coisa fraterna, preferida, única e exclusiva.
O “eu “ e o “sítio” eram companheiros e amigos, em anos e anos seguidos de fidelidade, de encontros religiosamente repetidos, com separações por tempo e razões sabidas e certas.
Ao “sítio” o “eu” dava a presença, a acção da sua vida, o percurso do seu crescimento e amadurecimento, deixando espalhado pelas calçadas, areais, ondas do mar, banhos de lua, esplanadas, e por todo o espaço e tempo, os sonhos, os amores, as alegrias, as esperanças, os feitos e as glórias, os insucessos e os falhanços, o riso e o choro, o encontro e o desencontro. Em suma, o “sítio” recebia e guardava do “eu” a memória de um tempo que ia passando no acontecer de uma vida.
Em cada verão, e num ápice, o “sítio” acolhia as confissões do inverno que ficara para trás, e sustentava os ideais, sonhos e projectos para o tempo vindouro. Logo nos primeiros dias, o passado era absolvido e o futuro prometido, senão mesmo garantido, ficando então o presente para ser vivido nesse enlevo com o “sítio”.
O “sítio” era o guardião da vida passada, a génese do optimismo para o futuro e o palco da felicidade presente. Tudo, pois, azul.
E o “sítio”, o que dava ao “eu” em contrapartida do que este lhe entregava?
É na conclusão desta contrapartida que me emaranho em análises e vejo e revejo tudo, para concluir que essa retribuição, em que se alicerçava e que permitia a relação estabelecida, era afinal muito simples, mesmo muito simples.
O recebido pelo “eu” era a perenidade, a constância, a imutabilidade do sítio.
Em cada reencontro ele estava como fora deixado a cada partida, tudo na mesma para viver o mesmo.
Cada reencontro era um voltar para o colo protector, para o regaço de uma mãe eterna, que sempre estava e estaria à espera, para um acolhimento de consolo, de mimo, de paz e tranquilidade, para serenar e animar.
Este sentir uma terra como colo materno provinha de, ao chegar, sentir estar-se a alcançar quem espera, sem se modificar, sem se transfigurar, para ser logo reconhecida e querida, para desde longe correres sem hesitações para os seus braços por reconheceres todos os traços desse regaço desejado.
As mesmas ruas, casas, igreja, monumentos e jardins, as mesmas lojas, praia, doca, barcos. O sol, o mar e o céu de sempre
Os sons, os cheiros, as cores, os ventos e aragens, as sombras e os soalheiros, sempre conformes com aqueles que a memória chamava nos momentos de saudade.
As pessoas de lá (habitantes, transeuntes, comerciantes, artífices, pescadores e gentes de docas, banheiros, e vizinhos) sempre os mesmos, sempre idênticos, sempre reconhecidos e que nos conheciam. Lá, as crianças permaneciam crianças, os jovens mantinham-se jovens, e os velhos estavam somente um pouco mais velhos, mas tudo com ínfimas variações que não afectavam o quadro de conhecimento, intimidade, reciprocidade, cordialidade e simpatia, caldeado por anos de contacto e companhia.
As pessoas veraneantes formavam uma “tribo” que se identificava e reconhecia como tal e agia em ritos de grupo, em matilha, numa partilha de espaços, tempos e modos de acontecer que fraternizava a relação grupal.
Essa perenidade, estabilidade, durabilidade, previsibilidade do “sítio”, conferia ao “eu” inestimável segurança, serenidade, equilíbrio, calma e, sobretudo, paz.
O reencontro no presente com o que foi o nosso passado gerava a tranquilidade de se ser e pertencer a algo que nos surgia eternamente nosso, disponível, hospitaleiro e desejado.
Nada pacificava mais do que ocupar o mesmo pedaço de areia na praia, olhar à volta e ver os mesmos de antes, conhecer cada canto e recanto do lugar e das pessoas que o animavam; numa síntese: poder não privar com ninguém e com todos falar, poder andar sem dinheiro e tudo comprar, poder andar sem chaves e em todo o lugar entrar.
Pois é, mas esses “sítios” acabaram, perderam-se, deixaram, pura e simplesmente, de ser assim.
Numa voragem tudo se perturbou, corrompeu, modificou e transformou.
As casas e edificações que eram as referências passaram a blocos de apartamentos, os espaços livres foram ocupados, as ruas foram esventradas por avenidas, as lojas são de ramo ou natureza diferente, as rotinas acabaram, o toldo é chapéu-de-sol, o banheiro é nadador-salvador, o cliente é consumidor, o interesse pelos “pequenos” pela “senhora” e pelos “paizinhos”, passou à pergunta quantos são? e, sobretudo, como vai a saúde do cartão de crédito.
Num ápice, a sólida e fiável civilização ancestral (porque durou a vida do “eu”) transformou-se numa plataforma de circulação de pessoas e bens, anónimos, indiferentes, misturados, alienados, indiferentes. Tudo é, definitivamente, “pastiche”, um deambular de anónimos entre anónimos.
Os “sítios”, de tantos revolvidos e adubados de novidades, secaram, desertificaram, e hoje são pedaços na vida de alguém, mas nunca mais refúgios de essência, guardiões de memória, recantos de história.
São plataformas logísticas na indústria das férias.
Se reflicto sobre isto não é por saudosismo, não é por renegar o processo e desenvolvimento, não é por ser contra a democratização e maior acesso de todos a tudo. É apenas porque sinto e sei quanto o sítio foi importante para mim, e temo que a falta dele possa ser bem marcante e penosa para os jovens que nunca o conhecerão.
Crescer e tornar-se adulto sem “sítio” e “tribo” é um desafio imenso para a juventude. Não os invejo.

ATM

16 junho 2009

15 junho 2009

Lanterna Vermelha (que pode ser Red Light, em inglês)

Diário de Amália, dia de descanso suplementar.

A dra. Clara, no gozo de uma generosidade que a caracteriza, decidiu dar esta 2ª feira. Alegou Santos Populares, dois feriados, calor, cansaço acumulado, para prever que haveria necessidade de dar arejamento às raparigas desta Fábrica da Ilusão.
- Voltem na 3ª feira fresquinhas que nem uma alface. Não quero cheiros a sardinha nem escaldões que revelem sol a mais.
E elas lá foram, cada uma para os seus destinos. Em casa ficou apenas Mary Jo, a americana que se prestou ao desafio da simultaneidade com dois clientes.
- Sabes, Amália? Aquilo que se passou com a Joana Maria na semana passada fez-me pensar na vida. Um encontro com o próprio pai nesta casa deve ser dramático.
- Nem quero imaginar...
- Conheces o Sting e os Police?
- Sim, conheço.
- Ouve esta música e toma atenção à letra. Todas as noites, antes de me deitar, oiço um bocado e imagino que alguém me diz que não tenho de acender a lanterna vermelha, que não tenho de me vestir para a noite nem de partilhar o meu corpo com outra pessoa. Talvez um dia mude de nome e me chame Roxanne...
Soltou uma gargalhada antes de colocar o disco na aparelhagem.




Roxanne, you don't have to put on the red light
Those days are over
You don't have to sell your body to the night
Roxanne, you don't have to wear that dress tonight
Walk the streets for money
You don't care if it's wrong or if it's right

Roxanne, you don't have to put on the red light
Roxanne, you don't have to put on the red light
Put on the red light, put on the red light
Put on the red light, put on the red light
Put on the red light, oh

I loved you since I knew ya
I wouldn't talk down to ya
I have to tell you just how I feel
I won't share you with another boy
I know my mind is made up
So put away your make up
Told you once I won't tell you again it's a bad way

Roxanne, you don't have to put on the red light
Roxanne, you don't have to put on the red light
You don't have to put on the red light
Put on the red light, put on the red light


Quando enfrentei Mary Jo, no final desta música, percebi que os olhos dela me atravessavam, embora aparentemente me fitassem. Tudo nela deambulava por outro lado - pela sua vida presente e, sobretudo, futura, pelo desejo de não acender a lanterna vermelha, de não partilhar o seu corpo com homens de ocasião, de não se vestir para a noite. Senti-lhe um estremecimento frio, que a agitou de cima a baixo. Compôs o cabelo, retirou o disco e perguntou-me, decidida:

- Sabes quando volta a Dra. Clara?

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

14 junho 2009

Como um grão de mostarda

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Tenho para mim a certeza de que todos temos dentro de nós o grão de mostarda de que nos fala o Evangelho de hoje. E estou ainda certo de que ao longo da minha vida lidei com ele de forma diferente. Já habitou um canto esquecido do meu interior, relegado para uma indiferença de quem fazia poucas perguntas - não por ausência de dúvidas, mas por desinteresse pelo tema. Já cresceu de tal forma que todo eu me abriguei à sua sombra, sendo factor decisivo de sobrevivência equilibrada em tempos de tempestade. Agora, nos dias que correm, e se me perguntassem como coabita dentro de mim este grão de mostarda, diria uma expressão popular e de criatividade vaga: ele há dias...

Todos os Domingos aqui venho, iluminado ou desinteressante, escrever sobre grãos de mostarda. Nem sempre tenho muito para dizer aos outros, mas há qualquer coisa que ressoa teimosamente dentro de mim: uma certeza das falhas que acompanha um propósito de melhoria. Semanalmente aqui venho - na escrita ou na minha interioridade - recordar o que é fatal e o que é importante: somos imperfeitos, mas Deus não é senão amor. Abriguemo-nos à sombra deste grão de mostarda.

***
Do Evangelho de hoje:

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«O reino de Deus é como um homem
que lançou a semente à terra.
Dorme e levanta-se, noite e dia,
enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como.
A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga,
por fim o trigo maduro na espiga.
E quando o trigo o permite, logo mete a foice,
porque já chegou o tempo da colheita».
Jesus dizia ainda:
«A que havemos de comparar o reino de Deus?
Em que parábola o havemos de apresentar?
É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra,
é a menor de todas as sementes que há sobre a terra;
mas, depois de semeado, começa a crescer,
e torna-se a maior de todas as plantas da horta,
estendendo de tal forma os seus ramos
que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra».
Jesus pregava-lhes a palavra de Deus
com muitas parábolas como estas,
conforme eram capazes de entender.
E não lhes falava senão em parábolas;
mas, em particular, tudo explicava aos seus discípulos.

13 junho 2009

Anúncio

A convite da minha querida amiga Ana Vidal, que me ensinou tudo o que havia para saber sobre a blogoesfera e eu tinha vergonha de perguntar, escreverei semanalmente, por enquanto ao Sábado, no seu blog Porta do Vento. Sugiro uma visita ao espaço. Não se arrependerão por tudo o que lá lerão - entre Domingo e 6ªfeira. O meu dia é duvidoso...

JdB

Poema do dia de hoje

Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento
A dar o seu passeio acostumado
E a decorar num tom rezado e lento
Um cândido sermão sobre o pecado.

E andando...andando sempre
Repetia o seu divino sermão suave e brando
E nem notou que a tarde esmorecia
E vinha a noite plácida baixando

Andando... andando, viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua, das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe
E cansado por haver andado tanto
Sentou-se a descansar o bom do monge
Com a resignação de quem é um santo.

O luar, um luar claríssimo nasceu
Num raio dessa linda claridade
O Menino Jesus baixou do céu
E pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava os seus murmúrios ao dos pinhais
Os rouxinóis ouviam-se distantes
O luar, mais alto, iluminava mais

De braço dado para a fonte vinha
Um par de noivos todo satisfeito
Ela trazia no ombro a cantarinha
E ele trazia o coração no peito.

Sem suspeitar que alguém os visse
Trocaram beijos ao luar tranquilo
O Menino porém ouviu e disse:
- Oh, frei António, o que foi aquilo?

O frei erguendo a manga do burel
Para tapar o noivo e a namorada
Mentiu numa voz doce como o mel
- Não sei que fosse, eu cá não ouvi nada.

Uma risada límpida, sonora, cristalina
Ecoou como notas de ouro sobre o caminho.
- Ouviste frei António, ouviste agora?
- Ouvi Senhor, ouvi, é um passarinho.

- Tu não tens com a cabeça boa.
Um passarinho? E a cantar assim?
E o pobre Santo António de Lisboa,
calou-se embaraçado.

Mas por fim, corado como as vestes dos cardeais
Teve esta saída redentora
- Se o Menino Jesus pergunta mais
Queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora.

E voltando-lhe a carinha contra o vento
E contra aquele amor, sem casamento
Pegou-lhe ao colo e disse:
Jesus, são horas! E abalaram para o convento

Augusto Gil

12 junho 2009

a caminho do verão, sempre.


interrompo hoje a minha recente série de "posts mais poéticos", em regra da minha própria autoria (o que se deve notar, digo eu, desde logo pela imperfeição neles decerto reinante..), para partilhar convosco uma pequeníssima reflexão.

há uns dias atrás, a caminho do estúdio de rádio onde, semana após semana, tenho vindo a gravar o programa 'estação de inverno', o meu olhar cruzou-se com um rapaz, manifestamente afectado por uma daquelas doenças do foro neurológico (e perdoem se cometo algum erro de palmatória) que fazem com que quem delas padece sofra de descoordenação motora, sendo muito difícil executar a generalidade dos movimentos que no nosso quotidiano nos são tão colados à pele que nem neles reparamos.

ao passar pelo rapaz, apeteceu-me dizer: "levanta-te e anda!". ou, mais humildemente, dizer algo numa versão mais de acordo com a nossa (dele e minha) escala humana. mas dizer..

assaltava-me uma dúvida, uma inquietação pueril: porque é que, ao som de uma palavra mais assertiva, mais decidida, todo o sistema neuromotor não se pode simplesmente regenerar, partir do zero, recomeçar, reconfigurar, fazer um "reboot"? porquê?

bem sei que estes pensamentos sofrem porventura de um elevado grau de ingenuidade. mas, por vezes, é a candura, a simplicidade, aquela pergunta certeira de feição mais naif, que nos conduz à construção de "insights" sobre nós próprios, sobre o mundo, sobre a nossa relação com o mundo.

ao pensar nestas coisas, numa fracção de segundo, pensei imediatamente noutras tantas, como dizer, adjacentes:

a) senhoras e senhores que teimam em não entender os meus dias de fragilidade emocional, os meus recorrentes períodos de neblina, percebam de uma vez por todas que, se fosse assim tão simples, seria eu o primeiro a dizer a mim próprio as palavras mágicas: "levanta-te e caminha, rapazola!". e eu levantar-me-ia, de súbito, metafórica e talvez literalmente, vigoroso e fresco que nem uma alface, recuperado da ressaca interior, para logo fazer em passo estugado aquilo que é tão naturalmente simples, para tanta e tanta gente que conheço: segui em frente, sem mazelas de maior. acham que alguém gosta de trazer o inverno pela mão? que alguém gosta de habitar nas sombras? que alguém prefere o seu lado lunar, podendo escolher reinos mais solares? não me parece.

b) caríssimo gi: nem todas as pessoas têm a tua capacidade de sistematizar intelectualmente certos temas, de os decompor em fracções para logo os reordenar, de gerar análises mentais de forma quase automática, de ler os detalhes de forma intuitiva, de construir cenários xadrezísticos sobre tudo e a propósito de nada, de exercer uma certa arte da força interior, em ambientes profissionais mais hostis. e, ao disto teres consciência, deves usar mais candura, mais tolerância, para com os outros, ser menos "brutal" nos julgamentos que, por vezes, fazes. entendes, amigo gi? porque também eles, também elas, muitas vezes são intrinsecamente "incapazes" (pelo menos, da mesma forma que tu) de realizarem esses complexos varrimentos mentais, de articularem assertivamente certos pensamentos, transformando-os em gestos fortes, oportunos, consequentes. às vezes, nem sequer se apercebem, entendes?

dali atrás até aqui, foi um passinho.

e sai-te ao caminho a mesma frase que, há um par de anos, te fulminou, enquanto aguardavas pelo verde de um semáforo, algures numa qualquer encruzilhada desta luminosa cidade que tanto amas e que tão impiedosamente te castiga, em dias de chumbo:

"porque a inteligência, em todas as suas declinações, é uma qualidade; mas a bondade é um dom. um dom."

tento lembrar-me disto todos os dias. mesmo naqueles em que a anunciada primavera me traz apenas uma chuva de canivetes. talvez um dia, algum mais generoso 'great scheme of things' me explique o que tudo isto quer - ou quis - dizer, durante o meu tempo de vida.

gi.

11 junho 2009

Onde estão os Homens? (Onde está o Wally?)

Ultimamente tenho-me deparado com um mistério dificil de entender e resolver. Onde quer que vá, para onde quer que olhe, só se vêem mulheres. Parece que os homens se eclipsaram. Obviamente, não me refiro aos locais ou ambientes tipicamente frequentados por mulheres, como sejam cabeleireiros e igrejas (não, não há qualquer intenção em relacionar secadores com confessionários; são simplesmente locais que, naturalmente, coloco no lado feminino). Embora no que toca aos cabeleireiros e esteticistas, a coisa já esteja a mudar um pouco para o lado dos homens !

Mas voltando ao tema de hoje. Desaparecem aviões, desaparecem pessoas, desaparecem empregos e também desaparecem os homens ! Não sei qual deles o pior. Venha o diabo e escolha. Vou às reuniões na escola do meu filho e vejo 15 mães e 1 pai - desde já contesto o nome Reunião de Pais; à beira-rio, em passo jogging, vejo mulheres e raparigas andando ou correndo, em função da idade; à noite, calhando sair, vejo bandos delas; nos shoppings, ao fim de semana, vestindo o seu fatinho de trem e o seu téne, vem a avó, a mãe, a madrinha, a afilhada e, eventualmente, um homem para compôr o quinteto. Na praia, vemos grupos de amigas, nas esplanadas, aos balcões dos cafés, nos supermercados, à porta das escolas, nas creches, nos ginásios.

Onde estão os Homens ?

Na Internet, nas salas de chats, no facebook; aqui no Adeus, na Caixa de Comentários, as mulheres excedem, em número, os homens e reparem que sublinho em número. Os tantos mails que se enviam e re-enviam, falando e enaltecendo a Mulher-Mãe-Amiga. Não há mails sobre os homens ?

Onde estão os Homens ?

Nas discotecas, nas festas de anos, nos aniversários de casamento, nos enterros, nas aulas de dança, nos consultórios médicos, nos psicólogos e terapeutas, nas coisas da alma e do espírito, nos transportes públicos, até nas faculdades, há sempre mais mulheres que homens.

Onde estão os Homens ?

Enquanto escrevo, ocorre-me uma ideia: será que se trata de fenómeno inverso ? Não os homens que desaparecem, mas sim mulheres que, antes escondidas, emergem agora em toda a sua pujança e número? No tempo das nossas mães e avós, é certo, as mulheres ficavam em casa. Pouco se mostravam. Pouco brilhavam, salvo portas-a-dentro. O seu número era incerto, pois nem sequer votavam. Ou será que, na realidade, nascem mais mulheres que homens e por isso estamos, mesmo, em maior número ? Se assim fôr, a mãe-natureza (até a natureza é apelidada de mãe !) terá de fazer alguma coisa para reencontrar o equilíbrio.

Onde estão os Homens ?

A mulher e o homem, na sua essência, completam-se. Um sem o outro é como uma obra de arte inacabada. Ao longo dos tempos, sabemos pela ciência, muitas espécies animais foram evoluindo, transmutando-se, para se adaptar ao meio ambiente ou para evitar a extinção da sua espécie. Se os homens continuarem desaparecidos, que será de nós, pobres mulheres, seres incompletos?

Homens, onde estão vocês ? (r.s.f.f. - Caixa Comentarios do Adeus)

maf

O poder do sonho

Ao pensar na palavra “sonhar”, logo me ocorre o popular provérbio: “querer é poder”. Meditando sobre ele, atrevo-me, na minha modesta opinião, a criticá-lo, ou melhor, a refazê-lo: “sonhar é poder”. Penso que esta seja uma forma elucidativa de provar o poder do sonho.

Sei que não estou perante uma tarefa fácil, face às inúmeras pessoas que vêem o sonho como algo infantil e datado apenas para o tempo em que somos crianças. No entanto, sirvo-me do meu carácter sonhador proveniente da vontade e do desejo de alcançar um objectivo.

É aqui que está o cerne da questão: de onde vem o sonho? Ele provém do nosso inconsciente como reacção ao desejo de realizar algo grandioso que sabemos, à partida, apresentar dificuldades.

Tratada a questão da sua origem, é importante salientar o seu impacto na nossa rotina. Considero que reside, aqui, o ponto mais atraente e sedutor no acto de sonhar. Já com as metas traçadas no inconsciente, todos os nossos actos vão em função do objectivo a atingir. Logo, cada momento é vivido na constante procura daquilo que nos fará sentir, na plenitude da felicidade, um sonho realizado.

Assim, e em jeito de conclusão, considero o sonho um estado de vida permanente.

MTM

10 junho 2009

Largo da Boa-Hora


Ocorre-me hoje reflectir sobre a prática da mentira, divergência consciente e intencional entre o real e o anunciado, exercida com o propósito de enganar o destinatário da mensagem.
Ao abordar este tema, a primeira constatação que ressalta é a de que existem inúmeras causas e fins para se mentir, num espectro tão amplo e abrangente que nele se contêm inúmeras variedades entre os extremos que serão, respectivamente, a mentira piedosa e a mentira malévola.
A mentira piedosa é, como a designação sugere, aquela que é animada de uma intenção bondosa, compassiva, cujo único propósito é evitar ou adiar o sofrimento do outro pela omissão do anúncio de uma realidade dramática, cuja oportunidade de conhecimento e de enfrentamento não é evidente. É o que sucede quando se mantém alguém na ignorância de um mal grave, cuja percepção imediata não terá qualquer vantagem. É exemplo de escola, deste tipo de mentira, a informação que o médico guarda para si sobre certo prognóstico grave que admite ou conclui.
A mentira malévola é aquela que é instrumental a burlar o destinatário. É o engano fraudulento, associado a práticas de natureza criminosa e que, pela sua natureza, não justifica mais descrição.
Para este texto seleccionei três tipos de mentiras que me proponho abordar, porque me parecem ser, de entre as tantas categorias, espécimes com particular interesse no relacionamento entre as pessoas.
Elejo, pois, a mentira embuste (que é odiosa), a mentira medo (que é compreensível), e a mentira ânimo (que é louvável).
A mentira embuste consiste na sucessão permanente de acções e declarações, falsas e enganosas, por forma a criar em alguém em particular, na intimidade, ou nas pessoas em geral, na comunidade, a convicção de que se é uma pessoa conforme certo modelo, figurino, paradigma, que não têm, todavia, correspondência com a realidade efectiva da natureza do farsante.
A mentira embuste fabrica, pois, uma identidade, estado ou condição, que permite ao ilusionista aparentar aos outros aquilo que na realidade não é.
O mentiroso torna-se num personagem por si idealizado, exercido e assumido, distinto de si próprio, passando a viver, em permanência, no desempenho desse papel teatral.
Pela dificuldade, se não mesmo impossibilidade de exercício, a mentira embuste é raramente global, sendo o mais comum exercer-se em algum dos planos sectoriais, possíveis, designadamente, e entre outros, no plano moral, amoroso e familiar, social, profissional ou económico.
É em algum destes planos, ou melhor palcos, que o indivíduo, pela mentira embuste, vai desempenhar o personagem que elegeu e aparentar o que não é.
Para quem for o seu público, o farsante vai aparentar ser homem de bem e de virtudes, quando é na realidade um libertino; vai fingir sentimentos de amor e afectos, quando o que sente é indiferença e descomprometimento; vai jurar amizades, quando se esgota no seu egoísmo e auto-satisfação; vai invocar títulos e feitos importantíssimos, quando o que faz é comum, sem merecer distinção especial; vai alardear fortuna, quando o que cumula são dívidas e trapalhices.
As causas destas vidas em mentira embuste são a imoralidade, a amoralidade, o ego desmedido, a vaidade, a ganância, a ambição, a frustração, a ânsia da sobreposição e domínio dos outros, o egoísmo, o egocentrismo e outras tantas características e patologias de índole no mesmo sentido.
A razão do meu interesse nesta mentira embuste é porque sinto crescer e proliferar a sua adopção como modo de vida e, sinceramente, estou convicto de que os seus cultores são de facto perigosos - sobretudo em tempo adversos, como estes que agora vivemos - porque tendo-se já triturado a si próprios, não hesitam em sacrificar qualquer um para atingir os fins que premeditaram, perigosidade que se agrava nestes cenários de crises económicas e sociais em que vivemos.
Mas, além desse factor de perigo, outro há que me impressiona: é que estes intérpretes da mentira embuste constroem edificações que vêem como fortalezas, mas que não passam de castelos de cartas que, em regra e sem aviso, soçobram em estrondosas derrocadas, arrastando nas consequências desse ruir todos aqueles que de boa-fé neles confiaram e acreditaram, com consequências destrutivas para essas vítimas.
São famílias partidas e perdidas, amores desiludidos e desfeitos, amigos pulverizados, empresas arruinadas, empregos acabados, honorabilidade e lustre social estilhaçados.
Cautela pois, não se dê o caso de a vida de algum de nós gravitar ou ser relevantemente influenciada por algum desses ilusionistas…
Nos antípodas, a mentira medo consiste na fraqueza humana de faltar à verdade por temor que essa mesma verdade possa magoar, desiludir alguém a quem que se quer, por receio que o conhecimento de certo acto ou facto cometido acarrete perdas de confiança, de respeito, de admiração, de amor, de imagem e notoriedade.
Falo tanto de actos ou factos menos próprios e conformes aos projectos e comprometimentos assumidos e em que o outro confia e segue, como, e especialmente, àquelas acções menos conseguidas ou frustradas que se saldaram em fracassos, cuja revelação poderia perigar o equilíbrio da imagem no pedestal.
É muito ténue a linha que, relativamente à mentira medo, a faz ser um acto indigno e cobarde, ou a converte, ao invés, num acto compreensível e, até, recomendável.
Aceitamos o pressuposto de que todos erramos, todos falhamos, todos caímos. O que está em causa é saber se devemos ou não partilhar esses maus momentos ou, pelo contrário, não só silenciá-los, como negá-los se nos forem imputados ou suspeitados.
Trata-se, evidentemente, de uma matéria delicadíssima, em que penso dever ser a sã consciência a ditar a actuação que em cada caso deve ser assumida. Só um verdadeiro, honesto e corajoso exame de consciência nos pode ditar se o bom caminho é a verdade pela confissão, ou a mentira pela negação ou omissão.
E entre outros, esse exame de consciência terá de ajuizar a importância que o erro teve para o próprio, a sua real dimensão, a força das suas causas, as circunstâncias do seu sucedimento, o impacto para o futuro, a sua reparabilidade, ignorando corajosamente, por outro lado, as consequências que a divulgação desse erro importará para o outro, e para a relação entre ambos.
É este julgamento de nós próprios que somos chamados a fazer
Se a conclusão do julgamento for no sentido da constatação de que esse erro, essa queda, essa violação, é grave em si mesma e para si próprio, porque tem efeitos, impactos, dimensão, se sente como consequência ou detonador de modificações, então a mentira medo é cobardia e ignóbil. Porém, se o resultado for que esses percalços foram isso mesmo, meras inerências à frágil condição humana, que foram apenas pó da estrada, então a mentira medo é justificada.
Neste quadro importará, talvez, ponderar três aspectos: primeiro, a expiação de erros é um processo que, se for honesto, é lento e doloroso, não sendo legítimo ir às pressas buscar a absolvição pelo perdão de quem magoámos ou lesámos, sobretudo porque ao fazê-lo passamos sofrimento e angústia ao outro; segundo, ninguém por mais íntimo que seja quer saber tudo sobre o outro, dispensa de bom grado a partilha de certos episódios marginais e inconsequentes; terceiro, o insucesso, se justificado, não tem por efeito a queda do pedestal, pelo contrário, origina mais união, alento e incitamento para o futuro.
Resta-me a mentira ânimo, à qual o espaço já consumido neste texto só me permite uma breve referência.
A mentira ânimo é aquela que assumimos para ajudar o outro, para o entusiasmar, para reforçar as suas expectativas e esperanças, para fortalecer a convicção nos seus empreendimentos, para lhe afastar medos, angústias e outras aflições. É aquela que proferimos para sermos o espelho que reflecte a imagem que o outro quer e precisa ver.
Com parcimónia e propriedade é indispensável, em exagero e constantemente é um erro de alucinação do outro.

ATM

09 junho 2009

Páginas escolhidas para o Dia de Portugal



Com efeito! Depois de tão desencontradas emoções só apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe, que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó, nosso único agasalho, ressonava com majestade.

Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um
boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:

--V. Exas. não têm nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...

Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:

--Não temos aqui nada... Pergunte V. Exa. pelo Grillo... Ai atrás, num compartimento... Ele tem as chaves, tem tudo... É o Grillo.

A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, de certo já preparava o leitão.

Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes — e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.

Sacudi violentamente Jacinto:

--Acorda, homem, que estás na tua terra!

Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

--Então é Portugal, hein?... Cheira bem.

--Está claro que cheira bem, animal!

(Eça de Queirós, in A cidade e as Serras)

Músicas de dias que sempre correrão




Para o Wally, que não pediu esta música.

Histórias de descobrir o Mundo para a véspera do Dia de Portugal

(Portugal - I)

Da mão o Destino lhes escapou
e, feito nau, caiu ao mar
traçando no azul um rumo
que não puderam recusar.


(Portugal – II)

Dormia com o sol enrolado nos cabelos
e a areia de dentro de si escorria pela mão.

O mar o penetrou
e ao sair
as ervas medraram aí
como em bom chão.

Saíram então da terra
coisas tidas por secretas:
das cinzas criou um barco
das ganas
fez rotas certas.

Depois de parar um instante,
El -Rei D. João Segundo,
meteu a mão na cartola,
do vazio tirou o Mundo.


(Portugal – III)

Criando-se Pátria
aos homens se provou.

E fez-se depois ao mar
como quem um touro cita
para a si mesmo se provar.


(Portugal – IV)

Fim da Europa o criou
tranquilo e regular
e de proibido
só lá pôs o mar.

Da árvore tentação
o mar colheu
e, errante pelo mundo,
se perdeu.


(Portugal – V)

Heróis do Mar
nobre Povo
lúcido Ícaro.

As fontes do teu jardim
jorravam tédio e mel.

Partiste à grandeza.
Destino antigo,
profundamente mergulhaste o vento.

Profanando a Lei,
tocaste, ao de leve, o Sol.

Ferido,
soletraste a dor
e olhaste, coroado de lume,
a luz insuportável.

Só paraste de morrer
quando a terra arrefeceu
e recomeçou das cinzas a nascer,
rente, a erva.

JCN

08 junho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de todos os encontros.

Quando marcámos o encontro pelo telefone, num fim de tarde chuvoso e frio, o Sr. Jerónimo Antunes não manifestou disponibilidade para revelar a sua profissão. Foi de tal forma peremptório que imagino, até, que me tenha dado um nome saído da sua própria imaginação. De facto, nada obriga o cliente a revelar a sua verdadeira identidade nem a disponibilizar a actividade profissional. Há informações que não são obrigatórias e que cada um gere da forma que melhor entende.

O Sr. Antunes revelou-se um homem trivial: estatura média, cabelo grisalho a revelar entradas fortes, alguma barriga a denunciar sedentarismo, e uma idade que se situaria próxima dos sessenta anos. Vestia um fato cinzento-escuro, camisa branca e uma gravata azul-clara. De facto, as modas podem transformar em quase uniformes tudo aquilo que se veste.

No instante em que entrou no estabelecimento pressenti-lhe algum incómodo – ou seria apenas mistério? Olhou muito à volta, numa mistura de espanto e curiosidade, atentou fortemente nas raparigas que iam e vinham. Presumo que se tenha surpreendido com as roupas das nossas operárias, porque me perguntou com um ar de ligeira incredulidade:

- Elas estão sempre vestidas desta forma, digamos… normal? Não sabia.

Estou certo de que o Sr. Antunes imaginou saias demasiado curtas, botas demasiado altas, caras demasiado pintadas, cabelos demasiado ressequidos, figuras provocantes e muito próximas de uma vulgaridade pouco estética. Preconceitos, ou proximidade do que é real?

Ao telefone tinha solicitado a Joana Maria, tendo adaptado a sua agenda à disponibilidade da rapariga. Não resisto a relembrar parte da descrição que fiz dela:

A Joana Maria, uma rapariga lisboeta, bonita, alta e esguia, dona de uma elegância natural revelada pela forma de andar, de se sentar, de afastar os cabelos dos olhos, de conversar com os clientes. Apesar da sua licenciatura em Farmácia tinha concorrido ao Corpo Diplomático depois de meses insanos de estudo e pesquisa, persistindo contra uns pais que teimavam em deixar-lhe um estabelecimento nas avenidas novas.

Sorri, imaginando-a, com uma regularidade de relógio, a fazer companhia ao Dr. Guimarães e Costa, o gestor elegante que se interessara por esta jovem que jogava o crapaud suíço como ninguém. Agora, tocava-lhe em sorte o Sr. Jerónimo Antunes com quem travei um diálogo algo estranho, porque feito de interrupções, de suores frios que imaginei no cliente, de palavras gaguejadas, de silêncios incomodativos:

- Já conhecia a Joana Maria?
- Não, de todo. Não! Porque havia de conhecer?
- Como soube dela?
- Por um amigo… Se já lhe disse que não a conhecia.
- O Sr. Antunes joga crapaud suíço?
- Como? Crapaud suíço?

Não reproduzo mais do que esta pequena troca de frases, porque seria difícil descrever em palavras aquilo que só é visível pelos olhos e decifrável por uma intuição que, mesmo assim, tem falhas.

- E agora, o que faço?
- Se quiser ter a amabilidade de se dirigir ao quarto nº 3, a Joana Maria está à sua espera. Pede desculpa por não o vir buscar, mas está a arrumar umas coisas. Satisfação do cliente, sabe…

Vi o Sr. Jerónimo Antunes a desaparecer no corredor, abrindo um botão da camisa que de certo o sufocaria. Por momentos pensei que talvez ele próprio se desvanecesse quieto ao balcão. Não era, confesso, uma visão inédita. O nervosismo de alguns clientes sempre fora patente e compreensível. Há o medo de não estar à altura, a vergonha de se cruzar com uma cara conhecida, o enervamento de uma primeira vez independentemente da experiência que se tem.

Uma hora depois o cliente saía com um olhar vago, uns lábios perlados de suor, uma testa húmida, umas mãos que não disfarçavam o tremor. Sorriu-me envergonhadamente, e senti-lhe educação, mais do que amabilidade. Talvez o sorriso não fosse mais do que um esgar. Encostou-se ao balcão, e solicitou um copo de água. Hesitei, por um instante apenas, na motivação menos imediata do rogo: pedido de último condenado ou primeira alegria de um liberto?

- Então Sr. Jerónimo Antunes, sente-se bem?
- Sim… Obrigado.
- E o que tem a dizer-me da Joana Maria? Uma rapariga lindíssima, não acha? Espero vê-lo cá mais vezes. E estou certo de que ela também o desejará. Gostou dela?

O cliente abriu a boca e voltou a fechá-la. Uma intuição levou-me os olhos para o fundo do corredor, onde vi a Joana Maria - que fugira ao sufoco de herdar uma farmácia - linda e elegante como sempre. Num instante olhou para mim, no segundo imediato dobrava o corpo num soluço.

- Há muitos anos que gosto da Joana Maria e sabia que a encontraria aqui. Sabe, ela é minha filha.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

07 junho 2009

Músicas dos dias que correm

Pensamentos dos dias que correm

A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.

In O retrato de Mónica (Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares)

Solenidade da Santíssima Trindade

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

EVANGELHO – Mt 28,16-20
Naquele tempo, os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direcção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram-n’O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou-Se e disse-lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e fazei discípulos de todas as nações,
baptizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».


Dons, virtudes e frutos do Espírito Santo:
Dom do entendimento
Dom da ciência
Dom da sabedoria
Dom do con­selho
Dom da pie­dade
Dom da força
Dom do (santo) temor de Deus

06 junho 2009

Imagens dos dias que já correram




Adeus Natasha

Hoje faço um percurso a contragosto. Deixo uma pessoa numa estação de onde partirá para uma viagem de três dias. Três dias que imagino devam equivaler à dureza dos oito anos aqui passados. O mais certo é não voltar a vê-la. Natasha, minha empregada, leal como um pastor alemão, deixa-me um buraco no peito. 58 anos, emigrada calejada já antes de cá chegar, caiu-me aos pés sem falar português, de livrinho de significados em punho e pedindo um ordenado miserável. Enquanto estudava e evoluía na nossa Língua eu colava papéis amarelos nos objectos passíveis de tarefa, desenhava a ideia, em traços tão naifs que só podem ter contribuído para o seu desempenho. Perante a minha total inabilidade gráfica foi inteiramente legítimo que Natasha não fizesse nada com rigor. E quando se esmerava acima da média, sabe Deus com que sacrifício, mandava-lhe uma mensagem em festa, o incentivo. Era sim, fraca, a qualidade do seu serviço, mas imprescindível mantê-la a trabalhar. Por isso, impingi-a a umas quantas casas amigas. Os meus argumentos sempre foram comovedores e demolidores, mas houve quem a despedisse. Precisamente, o meu patrão. “Onde desencantaste a mulher?! Quem te paga para agenciares domésticas do Leste? Tem paciência. Nunca vesti camisas tão mal passadas!”

Chegou ao fim a minha Natasha. Viveu num quarto alugado, aprendeu português, viu os meus filhos crescer, nunca se esqueceu dos meus anos, de pôr flores ao meu Cristo. Trabalhava doente, não queria receber nos feriados, lutou em vão para proferir correctamente o nome Zé Maria – ficou o Maria Zé. Sustentou a família toda na Bulgária, passou horas no SEF, trouxe as duas filhas, um neto e o marido, mas até cá viveu apartada deles. Terça, em Gabrovo, espera-a uma mãe velhinha e doente, o desemprego, uma conta bancária a zeros e o futuro do costume – incerto. Como a Natasha, há oito anos na Bulgária, sinto o mesmo abismo em Portugal. Uma empresa à beira da falência, um País que sem dó nem piedade me exige as coisas mais incríveis e uma profissão que morre a cada dia. Na Natasha, percebi que para sobreviver esquece-se a falta de forças, o passado e o que se foi, larga-se tudo e parte-se, até para limpar o chão que outros sujam. Das suas olheiras de insónia, saudades, cansaço e preocupação, saltava sempre um brilho para nós. Lágrimas, vertia-as longe. Nunca se aproveitou de mim, nunca aceitou almoço ou lanche, nunca me deixou descalça em oito anos. O meu dinheiro jamais teve um fim tão digno. E o que leva daqui a Natasha? As mãos vazias, o coração em chagas. O que veio fazer a Portugal? Só vislumbro a lição que me deu, o mais útil ensinamento para o meu amanhã – o seu exemplo de coragem, humildade e persistência.

DaLheGas

05 junho 2009

no comboio descendente*

de pés descalços, areia por baixo,
as ondas ao fundo e perto
- como o mundo.

de mãos nuas, mexendo na areia,
as estrelas longe e perto
- no mesmo segundo.

espécie de flash fulminante,
lembrando cada instante
- e assim por diante.

uma tarde a revistar as algibeiras,
por dentro, por fora
- de todas as maneiras.

mas não encontrei palavras literais,
nem as metáforas de ricouer,
nem signos, nem cifras, nem fórmulas
- nem criptografias vivas, nem geografias mortas.

nada servia para nada;
nada me fazia bem,
nada me fazia mal.

será então a ausência.. tudo?
ou será antes a presença.. nada?
tudo baço, tudo difuso,
tudo raso, tudo mossa.
eu (para ti): 'nada posso'.
tu (para mim): 'tudo passa'..


* verso de Fernando Pessoa, título de uma conhecida canção de José Afonso.

gi

04 junho 2009

Músicas dos dias que correm

Nota: sem filme, apenas uma fotografia

Beta

Antes de começar a escrever estas linhas, enquanto ajeitava o saco cheio de esferovite que o Diogo trouxe num dia em que resolvemos beber minis demais, Toma lá isto, está a ocupar o meu quarto todo, mas vê lá, é para a Rita, não é para ti, tinha na ideia escrever sobre o condão das manhãs em que o despertador se deixa substituir por um beijo preguiçoso e um bom dia da mesma família. Acontece que, instalado o estaminé, me veio à memória, e não fosse essa, de entre todas as faculdades do intelecto, a minha favorita, a Beta. Perdoem-me os que queriam saber mais das minhas manhãs, ficam prometidas para uma outra oportunidade.

A Beta era a mercearia da Rua Sá Carneiro, que fazia entroncamento com a minha rua, a Da Saudade, as mesmas que contornavam a escola. Tínhamos ali, portanto, uma conjugação de fenómenos demográficos e urbanísticos que faziam daquele cantinho da Vila Forte, um pequeno paraíso para se crescer, um lugar digno de recordação. Comecei a ir à Beta na idade dos joelhos, aquela em que ainda não sabemos bem andar, apenas nos limitamos a atirar as pernas para a frente, ao acaso, e conhecemos toda a gente pelo meio das suas pernas, ora na companhia da Matilde, que fazia o almoço e passava a ferro as camisas lá de casa, ora na da minha mãe. Desse tempo, além dos joelhos, só recordo o meu reflexo no espelho inclinado que estava por cima das frutas e verduras, lembro-me de olhar para cima e de ver um pequeno, novo de mais para usar aqueles óculos, sem uma sobrancelha, que ficava sempre no penso para os "olhos tortos", perdido numa confusão de sapatilhas, sapatos e chinelas, de todos os que por ali andavam nas suas compras. Mais tarde, do alto dos meus quatro ou cinco anos, comecei a ir lá sozinho, com encomendas simples lá de casa, Dois quilos de batatas novas Zezinho, e não deixe que o enganem com o troco, Vai à Beta e trás um pão caseiro Zé, corre antes que acabem, Ai que eu não tenho cenoura para a sopa! Zé!, só o meu pai me deixava sossegado, ele nunca precisou que eu fosse à Beta, nunca me lembrei de lhe perguntar porquê. Quando comecei a receber mesada, duzentos paus, acordei para toda uma riqueza de guloseimas, bolicaos e batatas fritas, até então vedados por força do dinheiro contado para os recados. O poder de compra veio com a primeira classe, antecipei-me rapidamente à matéria de matemática e sabia de cor, a mesada dava para quatro sumóis ou quatro bolicaos, para seis ou sete pacotes de batatas dos pequenos e para um bolso cheio de pastilhas gorila, era uma infinidade de alegrias em mil e uma combinações diferentes.

A Beta fechou já eu tinha pêlos no queixo, descobri numa tarde qualquer, já o meu mundo ia além do rio Lena e do Bairro de São Miguel, não resisti parar em frente à montra forrada a jornal amarelo e a recordar o tempo em que aqueles dois degraus eram um pulo enorme, em que o reflexo do vidro era o meu boné do Benfica, em que os recreios começavam numa correria louca, do lado de lá da rua, em busca duma gorila de laranja, que durava até ao recomeço das aulas, até ao caixote das pastilhas que ficava à entrada da sala, por baixo do quadro das tabuadas.

Quando brinco com a memória, gosto de guardar a infância separada por lugares, a Beta tem uma gaveta só dela.

Zé-do-Telhado

03 junho 2009

Largo da Boa-Hora

Quem já viveu a despedida irreversível, o adeus definitivo, a partida sem regresso, sabe que nesses tempos de cisão, de separação, de perda, irrompem impetuosamente e coexistem múltiplos sentimentos, pensamentos e memórias, formando, o seu conjunto, um intricado e complexo acervo que caracteriza e individualiza a passagem pessoal de cada um por esses acontecimentos.
Confrontando a minha experiência com a de outros que comigo partilharam situações de perda, reconheço e identifico alguns sentimentos que são comuns a todos e que predominaram no durante e, sobretudo, no depois dos acontecimentos.
De entre esses denominadores comuns destaco o remorso, em especial aquele gerado por silêncios e omissões, e não tanto por acções ou afirmações.
Efectivamente, sente-se culpa e arrependimento pelo que não se fez ou não se disse, em surpreendente preponderância sobre a contrição por actos praticados ou ditos proferidos.
Na verdade, não é o mal que se fez que corrói, mas o bem que se omitiu que consome. Porque efectivamente, na maioria dos casos, as pessoas não exercem a maldade, o que sucede é que omitem a bondade.
Na ocasião do fim da estrada, em que os peregrinos se perdem e se separam para sempre, num ápice de recordação e culpabilidade dolorosa, vem o amargo das palavras que foram caladas, dos olhares opacos, dos abraços adiados, dos beijos reprimidos, dos afagos preteridos, dos acenos esquecidos. Em suma, do amor aprisionado numa interioridade teimosa e orgulhosamente não declarada, oferecida e partilhada.
O que me importa neste texto não é propriamente dissecar o luto da perda, mas antes, a partir de uma constatação da sua essência - o remorso – apelar a uma vivência anterior que evite, ou pelo menos mitigue, que o arrependimento seja par no cortejo de dor e infortúnio que segue o adeus.
Vejamos pois.
A perda de entes queridos sobrevém, ou pela morte física, ou porque deixaram de ser queridos para nós, ou porque nós deixámos de ser queridos para eles.
A morte, essa, é inelutável e imprevisível, escapando por definição ao domínio da vontade humana.
Sobre o epílogo da vida nada podemos fazer, e para este texto este fim importa, porque sendo condição extrema de separação, é a ocasião de remorso em que a generalidade das pessoas incorre, e em cuja teia é justamente apanhada.
A morte surpreende-nos sempre, surge abruptamente, vem sempre na véspera do justo tempo.
Este desfasamento entre o tempo da realidade e o tempo conceptualizado decorre da nossa repulsa ao efémero, radicada na irracional crença da perenidade do que é, portanto, na imortalidade.
Ilusão de perenidade que nos leva ao adiamento do ser, do dizer e do fazer.
Concedemo-nos prazos e amanhãs como se fossemos divindades, e com essa concessão somos surpreendidos pela chegada da hora, com a mesma infantilidade e inconsciência da criança preguiçosa, espantada pela chegada do exame, após ter gasto o tempo de estudo em folguedo.
Prudente e sábio é aquele que não confia em amanhãs e rompe hoje, com toda a urgência, o muro de silêncios e o deserto de omissões que povoam a sua relação com o outro, desconfiando sempre que adiar pode tornar tudo tarde de mais.
Admito, aliás, que no chamado leito de morte se possa obter, em derradeira instância, o perdão por actos praticados, se consiga a generosa e pacificadora absolvição de quem parte pelo mal que foi feito, mas já não estou tão certo que esse perdão possa recair sobre uma vida que, não tendo sido vivida, condenou outra a também não o ser, tantos foram os silêncios e omissões que as preencheram. Apagar “instantaneamente” um erro é possível, mas reconstruir décadas de “nada” será, provavelmente, uma ficção impossível, mesmo para o mais bondoso.
Deixando a morte, abordemos os actos entre vivos
O silêncio e a omissão corrompem, minam e destroem os alicerces de qualquer relação.
A ausência e vazio entre presentes fisicamente é mais destruidora e arrasadora do que a distância real que se possa interpor entre duas pessoas.
A mera justaposição, as rotinas do estar e acontecer, o conformismo de uma realidade estagnada como água de lago camarário abandonado, são as causas reais da deterioração da relação.
O fim do princípio sucede quando nos surpreendemos - mas passamos a aceitar - o automatismo da vivência, o quando e como nos tornámos para o outro em peça de uma engrenagem comprometida a um funcionamento mecânico de sobrevivência e subsistência, incluindo de imagem e figurino.
O princípio do fim ocorre quando um dos dois, em inoportuna lucidez, conclui que tudo se resume a um continuar por continuar, a um caminhar, passo após passo, sem felicidade, prazer, desfrute, ideal ou esperança nesse roteiro.
E estes desencontros, estas dissonâncias, estes distanciamentos, pior e no limite, estas (des)intimidades, estas (des)cumplicidades, este estranhamento do outro são, regra geral, resultado do silêncio e da omissão que passou a ser dominante.
Na verdade, a essência dos protagonistas não se alterou. Porém, as palavras de amor, de ternura, de confiança, de compreensão, de sonho, de confissão, de esperança, de medo, de valorização, de exaltação, de importância, de ansiedade, de desafio de... e de… que unem, cimentam e criam a verdadeira e permanente aliança, passaram a ser omitidas, deixaram, pura e simplesmente, de ser ditas.
Quando se queriam permanentes, actuais, constantes, oportunas, em cada fase e momento da vida, porque cada quotidiano reclama o compromisso de partilha plena de tudo o que nos vai na alma, para não sobrarem destroços que, em se acumulando em solidão, acabam por formar uma açude, uma barreira, um muro, que obstrui, reduz e acaba por eliminar a fluidez indispensável para a mesma seiva alimentar a mesma planta, sendo que é este o compromisso do amor, que assim vai sendo negado e que acaba por soçobrar.
Estes silêncios não são gerados pelo desamor ou desencanto, ou grandes desencontros. São gerados porque a desconfiança, o medo, a preguiça, o excesso de confiança os recomendam ou consentem, e a vergonha, o pudor, o temor do ridículo, da revelação da verdade, da frustração perante a vida acabam por os impor.
Do mesmo modo, e no mesmo sentido, sucedem as omissões de actos. Falo de manifestações e expressões físicas que corporizem as palavras que deviam ser ditas e que as securitizariam, complementariam e demonstrariam, cuja ausência deixa um vazio de gestos, impossível de suportar, compreender e aceitar.
Ora, este silêncios e omissões minam e corroem os alicerces, expondo-nos à vulnerabilidade de qualquer agressão externa, que funciona apenas como detonador para a pólvora que essas lacunas constituem.
Nada nem ninguém destrói uma relação, apenas detona o explosivo em que ela se converteu, e sucede a implosão. Um “amo-te”, um “preciso-te”, um “quero-te”, um olhar, um sorriso, um carinho, um abraço, um beijo, acontecidos no tempo e modo do outro, e de nós próprios, tornariam esse detonador em mero estalido de carnaval…
E o melhor é que a minha fé, neste sentido, não exige heróis, nem vencedores, nem estrelas, apenas homens e mulheres sensíveis, atentos e conscientes de que o amor não é um título, uma qualidade, um direito, uma propriedade, mas um estado de graça, que, pela palavra e pela acção, tem de ser vivificado e fortalecido permanentemente. Acredito na dinâmica e sei que a estática liquida.
P.S.: Tudo o que vem dito é para mim válido para qualquer amor, seja ele conjugal, parental, filial e para qualquer afecto, como a amizade ou o companheirismo.

ATM

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