31 agosto 2015

Das saudades de quando éramos pequenos

Praia d'El Rey vista por um iPhone, 6ªfeira, 28 de Maio, pelas 20.00h

No seu ensaio intitulado Meden Agan, Álvaro T Monteiro fala sobre a iminente partida da mãe, dizendo que na morte dela vê a morte de todos os que lhe são mais próximos. Perante uma óbvia tristeza, remata: "são as saudades de quando éramos pequenos." Não há filosofia elaborada nestes dois pensamentos; não há ideias de além, de reencontros, de eternidade; não há dimensão de fé ou da sua inversa. Há, nestas duas frases que refiro / cito, uma humanidade singela, uma fragilidade terrena que só sente quem vê o mundo expandir-se (passe a contradição) até ficar do tamanho da sua infância. Num repente, são as memórias de "quando éramos pequenos" que ocupam todo o espaço de uma tela, o branco de uma página de livro, as quatorze linhas de um soneto, a infinidade de sinapses. Há um instante onde estas memórias absorvem tudo para, no instante seguinte, serem arrebatadas por uma viagem de onde não se regressa a não ser no formato fotografia, filme, roupa pendurada num armário, recibo da farmácia. Ou talvez não só.

O assunto não vem a despropósito: ontem, ao escrever este texto, cruzei-me com um artigo onde o autor mencionava sons - no caso vertente, um galo a cantar de manhã, um cão a ladrar ao fim da tarde. E falava da arqueologia que evidencia uma armadura ou um ânfora, mas que não consegue evidenciar um som. Todos temos esta incapacidade de transmitirmos aos que nos sucedem na vida e nas gerações, por mais próximos que sejam em afecto e / ou sangue, o que são os sons e os cheiros que colamos à frase são as saudades de quando éramos pequenos. Evidenciamos um casaco, um par de sapatos, uma carta antiga, um livro dedicado. Mas como explicamos o som das gaivotas a perseguirem os barcos que regressam da faina? Como descrevemos o cheiro dos eucaliptos outonais ou das compotas ou do peixe-espada grelhado ao estalar do verão? Como explicamos os sons e os cheiros da praia, dos fins de tarde, das noites quentes, das férias grandes, das famílias todas felizes e inteiras e cá?

Penso que o jogo da apanhada atravessa gerações. Há alguém que foge, há alguém que persegue. Ganha quem chegar ao sítio certo e gritar "coito!", porque ali está em segurança, ali ganhou o jogo, ali não é mais perseguido ou agarrado por um fralda de camisa. Os sons e os cheiros de quando éramos pequenos são o coito das apanhadas dos adultos. É aí que nos refugiamos quando um telefonema quebra a largueza do céu que prolonga o mar e instala uma nota desajustada na afinação do dia. Quando a alma se enregela a partir de fora, é aí que buscamos conforto, porque os cheiros e os sons da nossa infância são o agasalho que nos protege. 

São as saudades de quando éramos pequenos...

JdB  

30 agosto 2015

22º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mc 7,1-8.14-15.21-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
‘Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

29 agosto 2015

Pensamentos impensados

Galináceos
Ouvir as cavaleiras tauromáquicas a cacarejar dá-me um galo...

Quedas
Haverá algo de romântico nas Cataratas do Viagara?

Justiças
O julgamento de Luis XVI e Maria Antonieta foi um série de mentiras.
Ele há cada falso!

Dívidas
Vendeu cara a vida mas morreu pobre. Não lhe pagaram.

Portugal país seguro
Uma borboleta bate as asas em Celorico de Basto e não acontece nada em Cebolais de Baixo.

Progressismo
Foi sempre muito precoce; quando nasceu já tinha dois anos e meio.

Coincidências
Os olhos e os satélites artificiais estão em órbita.

Mudos mudem-se
A maioria dos de putados (e os deputados da maioria) faz lembrar os patos mudos.

SdB (I)

28 agosto 2015

Um poeta, dois poemas

Nome de Rua

Deste-me um nome de rua
Duma rua de Lisboa.
Muito mais nome de rua,
Do que nome de pessoa.
Um desse nomes de rua
Que são nomes de canoa.

Nome de rua quieta, 
Onde à noite ninguém passa,
Onde o ciúme é uma seta,
Onde o amor é uma taça.

Nome de rua secreta,
Onde à noite ninguém passa,
Onde a sombra do poeta,
De repente, nos abraça!

Com um pouco de amargura,
Com muito da Madragoa.
Com a ruga de quem procura, 
E o riso de quem perdoa.

Deste-me um nome de rua,
Duma rua de Lisboa!

David Mourão-Ferreira


***

Paisagem

Desejei-te pinheiro à beira-mar 
para fixar o teu perfil exacto. 

Desejei-te encerrada num retrato 
para poder-te contemplar. 

Desejei que tu fosses sombra e folhas 
no limite sereno dessa praia. 

E desejei: «Que nada me distraia 
dos horizontes que tu olhas!» 

Mas frágil e humano grão de areia 
não me detive à tua sombra esguia. 

(Insatisfeito, um corpo rodopia 
na solidão que te rodeia.) 

David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

27 agosto 2015

"O Fado, canção de vencidos"

O filme Fado, História de uma cantadeira, é acompanhado, do princípio ao fim, por um fado particularmente bonito - o Fado de Cada Um, com música de Frederico de Freitas e letra de Silva Tavares. Por questões da tese de mestrado, já devo ter visto este filme algumas dez vezes. Vejo, revejo, volto atrás, fixo uma frase, apanho uma ideia. Sempre, mas sempre, a voz deslumbrante de Amália, nessa altura com 28 anos.

A letra do fado não é uma letra de fado: é o fado em si ou, talvez melhor, a vida de cada um de nós que acredita no destino, na má sorte, em Deus que decide tudo sobre nós, mesmo sabendo, cada um destes "nós", que nada é assim, que o destino somos nós que o construimos, que nada do que nos acontece está escrito nas estrelas.


Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge por mais forte
Ao destino que Deus dá

Que bom seria, poder um dia, trocar-se o fado
Por outro fado qualquer
Mas a gente já traz o fado marcado
E nenhum mais inclemente
Do que este de ser mulher

Bem pensado
Todos temos nosso fado
E quem nasce mal fadado
Melhor fado não terá

Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge, por mais sorte
Ao destino que Deus dá

JdB


26 agosto 2015

Poemas dos dias que correm

Zimbabwe, Agosto de 2008

Entre a sombra...

Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.


(Maria Alberta Menéres, in Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, Lacerda Editora, 1999 - RJ, Brasil)

25 agosto 2015

Duas Últimas

Hoje, não sei bem porquê, parece-me bem retomar o tema do jogo. Como já o referi - aqui no estabelecimento ou noutros sítios - ver o que são as pessoas a uma mesa de jogo é um excelente indicador do que elas serão na vida real. Não vou pelo argumento da educação que se vê à mesa da refeição ou à mesa das cartas, mas pela forma como as pessoas jogam, celebram as vitórias, se conformam com as derrotas. 

(entre jogos de cartas de vazas ou de azar, dados, gamão, etc.,  partilhei mesas com muita gente e sempre me enervou mais, mas muito mais, as pessoas que tinham mau ganhar, porque ter mau perder é mais compreensivo, ainda que ligeiramente indesejável... Agora, ganhar e esmagar o adversário de forma arrogante e humilhante parece-me coisa pouco ética.)

Joguei muito King, algumas Copas, alguma Canasta, muito poker de dados vestido de aspirante a oficial miliciano num quartel abrantino. Alguns jogos são feitos para quatro pessoas; se aparecer um quinto, o número de pessoas é gerível; se forem seis é mais complicado, podendo mesmo ser impossível. A bem dizer, teria algum pudor em "infiltrar-me" numa mesa de jogo composta por quatro parceiros muito rotinados. Talvez me suscitasse a preocupação de estar a tornar-me um empecilho, um crava, uma excrescência naquela circularidade perfeita e com rituais próprios. E trazer um sexto? Isso então...

Uma mesa de jogo é uma boa metáfora para a vida. A forma como se joga, o modo como se organiza uma mesa de jogo, a imprudência com que podemos querer invadir uma mesa de jogo já constituída, a resistência necessária para suportar o olhar da mesa já constituída. Mesmo que este texto pareça particularmente críptico - ando falho de inspiração - convém não esquecê-la. A metáfora, digo eu, mesmo que não saiba porque a utilizei...

Deixo-vos com a música de John Williams: uma comovida interpretação do tema d' A Lista de Schindler. A explicação para a comoção parece estar aqui, num dos comentários: This was a real struggle. You celebrate the birthday of your daughter and you know you play one of your last performaces because of your dissease. So unfair. But what a wonderfull way to play your farewell... A música também convida.

JdB


24 agosto 2015

Vai um gin do Peter’s?

No Verão, o país parece desabar para Sul, com a avalanche de gente a caminho das praias e das noites quentes do Algarve. Vá lá não se afundar junto à Via do Infante.

Bem sabemos que há praias lindas por toda a orla atlântica, até ao Minho, mas não o clima cálido, quase africano da costa algarvia. De facto, à parte dos ventos violentos na Ponta de Sagres onde a cor do mar toma o azul forte e solene do Norte, tudo o mais é suave, turquesa e sem nortadas. Por isso, o Norte fica bastante despovoado e disponível para receber os visitantes, que ali têm muito para explorar. 

Primeiro palmarés nortenho: juntando o gozo de percorrer caminhos por entre paisagens de sonho, com sítios simpáticos para comer e dormir, a melhor estrada do mundo soma tudo isso e é portuguesa, segundo o estudo levado a cabo por especialistas estrangeiros para a Avis-rent-a-car. Num universo de milhares de troços candidatos ao prémio, nos quatro cantos do planeta, a Estrada Nacional 222 ganhou confortavelmente, exibindo valores que rasaram a correlação de curvas e retas considerada ideal pelos ditos especialistas. 

Dicas dos condutores experimentados para guiar na N222: «Esta zona é mais
segundas, terceiras, terceiras, segundas, mais travão do que segunda…»

A pequena estrada que liga o Peso da Régua ao Pinhão, serpenteando o curso aos ziguezagues pelas margens do Douro, cumpriu os requisitos da fórmula matemática criada por um trio de sábios para definir um critério de selecção objectivo e quantificável. A tal matriz determina o melhor tempo entre retas e curvas, além de incorporar benefícios extra como a envolvente natural. Assim, a estrada que dará mais gozo guiar deverá ter um rácio de 10:1, o que corresponde a dez segundos a direito para cada segundo a curvar, de modo a proporcionar a aceleração ideal para reta de tamanho certo e depois entrar na curva em U acentuado e relevée correcto. Ora, a N222 tem a proporção mais próxima do desejável, atingindo o 11:1. Facilmente, ganhou o galardão de World Best Driving Road, entre as muitas candidatas, com as medalhas de prata e de bronze a boa distância: a Big Sur na Califórnia chegou aos 8,5:1, e a A535 no Reino Unido ficou-se nos 8,4:1.

O próprio trânsito de camiões a circularem na N222 e a aparecer
ao virar de curvas apertadíssimas, aumenta o frisson da viagem. 

O júri reunia gente batida nestas lides. Assim, incluía um ex-piloto de Fórmula 1, que depois enveredou pela engenharia civil e a arquitectura, sendo o responsável pelo traçado das pistas de F1 dos últimos 20 anos – Hermann Tilke. 

O segundo era o designer de troços radicais, autor de montanhas russas famosas, como as britânicas Nemesis e Oblivion, em Alto Towers– John Wardley. Compreensivelmente, colaborou também nos efeitos especiais de 5 dos filmes do 007. Na sua opinião, uma boa estrada deve suscitar múltiplas sensações, da emoção à intimidação, com um ritmo variado de retas e curvas, proporcionando também uma experiência entusiasmante  e memorável, que divirta. Basta as vistas soberbas após cada ziguezague na N222, entre os socalcos de vinhas e o rio, para tirar o fôlego ao mais desatento. 

Segundo Hadley: «Embora este índice tenha uma base científica, depois das minhas experiências com Hermann e John, tornou-se claro que as emoções e as paisagens
foram factores essenciais. (…) É por isso que acreditamos que a melhor estrada
do mundo para conduzir é em Portugal – a Estrada Nacional 222»

O trio era completado por um físico quântico britânico – Mark Hadley, que esteve no arranque do estudo. Sobre a escolha tão renhidas entre tantos candidatos, explicou «O processo foi bastante exaustivo: em primeiro lugar aplicámos alguns conhecimentos físicos a uma ampla variedade de modelos de estrada. Posteriormente consultámos e envolvemos uma série de especialistas notáveis em diferentes áreas, inclusive Hermann Tilke e John Wardley (do júri), que ajudaram a refinar e testar este índice. Por fim, mapeámos meticulosamente estradas por todo o mundo com estes parâmetros rigorosos, de forma a identificar a melhor estrada para conduzir». 

Património Mundial da Unesco, o Douro continua em crescendo, com as suas quintas a oferecerem provas de vinho de grande qualidade, miradouros estratégicos a pontuar a galardoada Estrada Nacional, pontezinhas antigas, algumas do tempo dos romanos, uma estação de comboios em Pinhão revestida a azulejaria portuguesa, e todo o ambiente nostálgico da paisagem nortenha, que justificam a comoção de Jacinto quando aterrou acidentalmente naquelas paragens, acabado de chegar do chiquismo atordoante de Paris, que se pode tornar entorpecedor e entediante. O segredo de «A Cidade e as Serras» desvenda-se por inteiro naquela estrada ou na canja ainda saborosíssima das tascas perdidas nos contrafortes durienses. É que o Eça conhecia o Norte como a palma das suas mãos. 

Para aguçar ainda mais o apetite sobre os méritos da região e fugir ao caos instalado a Sul, a reflexão do Miguel Esteves Cardoso (de há uns bons anos) é eloquente. Guardiã do berço da nação leva a marca da identidade nacional: 


O NORTE

O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela.

As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades.

No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior.

É que só o Norte existe. O Sul não existe.

As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.

No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? (…)
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país.

Não haja enganos. (…) Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é onde Portugal começa.

Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. (…) sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. (…)

Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.

Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. (…)

Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. (…)

Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem.

As mulheres do Norte deveriam mandar neste país.

Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. (…) Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade.

Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, (…)

Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos (…), defendem o 'Norte' em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. (…)

Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes (…), com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.

O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm de dizer 'Portugal' e 'Portugueses' (…) sem complexos e sem patrioteirismos. (…) Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?»

por Miguel Esteves Cardoso 


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 agosto 2015

21º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Jo 6,60-69

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:
«Estas palavras são duras.
Quem pode escutá-las?»
Jesus, conhecendo interiormente
que os discípulos murmuravam por causa disso,
perguntou-lhes:
«Isto escandaliza-vos?
E se virdes o Filho do homem
subir para onde estava anteriormente?
O espírito é que dá vida,
a carne não serve de nada.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.
Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,
quais eram os que não acreditavam
e quem era aquele que O havia de entregar.
E acrescentou:
«Por isso é que vos disse:
Ninguém pode vir a Mim,
se não lhe for concedido por meu Pai».
A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se
e já não andavam com Ele.
Jesus disse aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»
Respondeu-Lhe Simão Pedro:
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus».

22 agosto 2015

Pensamentos Impensados

Crimes
Guilherme Tell, se tem matado o filho, teria cometido suicídio: matou um suíço.

Informática
Da internet recebemos os inputs, na casa de banho largamos os outputs.

Gula
Os peixes são uns gulosos, estão sempre com água na boca.

Bola
Treinador de futebol em português é mister, em inglês é coxo.

Macróbios
Vi na TV Mário Soares a abraçar Manuel Alegre, ou seria Matusalém a abraçar Noé?

Lesões
Os lesados percorrem Portugal de BES a BES.

Comilões
O Sporting ganhou a super-taça; os meus fatos tentam ganhar à super-traça.

Falecimentos
Os símios morrem todos de morte macaca.

SdB (I)

20 agosto 2015

Da paisagem

Durante algum tempo - não me lembro quanto, nem quando - apreciei sobremaneira a paisagem beirã / nortenha: a geografia montanhosa, as fragas, as ravinas, o serpentear dos rios no fundo de uma escarpa, a terra agreste onde a urze a custo desabrochava, como diria o Aquilino. Era como se esta geografia reproduzisse o desafio da vida - as curvas, as elevações, o eco a devolver os gritos, a altitude a deixar adivinhar um frio de rachar os ossos. A vida era agitação, procura, imediatismo, luta.



Depois - também já não sei quando - a minha alma regressou toda ao Alentejo onde passei muitos e felizes setembros: era a terra a perder de vista, o silêncio, o sossego, o ritmo lento dos dias, os castanhos da terra, os fins de tarde amenos e um tudo nada moles do fim do verão, as searas, o gerúndio local a dizer que nada se faz, tudo se vai fazendo, que não se vive, mas que se vai vivendo. 

Ontem, à hora a que escrevia, regressara ao Alentejo (muito perto da Borba das minhas saudades) que me conheceu menino a viver o seu primeiro drama de amor nas cartas a que se agarrou para sempre, a crescer nos cigarros escondidos e gregários ou nas idas aventureiras a uma Badajoz onde se apreciavam os caramelos e se temia a ferocidade da guarda fiscal. Ontem, à hora a que escrevia - e apesar dos temíveis 35ºC - confirmei o silêncio, a lonjura, os castanhos, o gerúndio como única conjugação possível da nossa existência verbal.



O que preside à mudança de apreciação da natureza? Não é seguramente uma questão de idade, como se houvesse - que há! - necessidade de vida suficiente para apreciar um Rembrandt. Não precisamos de mais anos para apreciar a beleza do marão em detrimento da beleza da planície alentejana, como não precisamos de mais anos para apreciar Londres em detrimento de Paris. É possível que alguma coisa mude dentro de nós para mudarmos a forma como olhamos para a terra que nos circunda? 

Em termos de natureza sou mais alentejano do que nortenho, sendo que já fui o contrário. O que mudou?

JdB   

19 agosto 2015

Game viewing

Há sete anos, que se completam no final do mês, estava num Lodge no Zimbabwe para alguns dias (luxuosos, a 12€ / dia) de safari fotográfico. Poderão relembrar os pormenores abaixo.

Hoje ainda estarei com um amigo recente que, volta não volta, vai a Moçambique caçar, tendo inclusivamente assumido um negócio nessa área. Um destes dias disse-lhe que gostava de ir com ele, tudo dependendo da evolução da vida profissional e financeira. Nunca disparei uma arma contra um animal, mas gostaria de ter essa experiência. Como me sentirei depois? Incomodado, como penso, ou todo entregue a um espírito ancestral de caçador? Acima de tudo move-me uma certa curiosidade sociológica: estar uma semana (não quererei estar mais) no meio do mato, isolado de comunicações e comodidades. Como me darei?

JdB

***

Dados que parecem relevantes para um melhor enquadramento da reportagem que segue:

Hóspedes do Nduna Safari Lodge: JdC e este vosso criado; uma diplomata relativamente júnior da embaixada inglesa e a sua irmã, ainda mais júnior; um casal com um filho dos seus 16 anos e com uma altura obscenamente elevada. O pai (presume-se que fosse, dado que o ADN não se observa a olho nu) neozelandês; a mãe, natural deste país, e que sofreu um qualquer trauma que lhe solta um conversar ininterrupto num inglês dificilmente compreensível. Tentou explicar o drama ao JdC, mas interpôs sempre uma outra história, e mais outra. E outra ainda… Resta-nos pois, a especulação – e o descanso do ouvido, não obstante a amabilidade da interlocutora.

Rotinas de Game Viewing: alvorada pelas 05.30h, chá, café e bolinhos trinta minutos depois; debandada para o mato decorrido igual período de tempo. Chegada pelas 09.30h, para pequeno-almoço. De tarde, o mesmo cerimonial das bebidas e biscoitos, mas a começar pela hora terceira com arranque passada meia hora. Chegada pelas 19.30h, a tempo de um banho retemperador e de um jantar ao som da savana.


Os meus leitores, fiéis ou ocasionais, perguntarão se vi animais diferentes, aves raras, insectos únicos. Indagarão se temi pela vida ante a investida feroz do búfalo, o rugido tremendo do leão ou o riso escarninho (imaginado, porque não vi) da hiena. Quererão saber se as aves piam diferente, se imitam o rufar dos tambores ou gritam toufraca em shona. A resposta é: não!

Num dia, após uma aturada busca e uma condução arrojada pelo mato e pela savana, já o sol tinha recolhido, encontrámos dois casais leoninos. Soubemos, por quem conhece o seu rebanho, que estavam em digestão de um búfalo deglutido, sem preocupação estética, mas com furor sanguíneo, havia quatro dias. A mansidão era tal que quis levantar-me e afagar-lhes o estômago cheio, sussurrando-lhes bichaninho ao ouvido. Não rugiram, e levantaram a cabeça vaga com uma indiferença que me desiludiu. Talvez eu ficasse pior, se tivesse um búfalo como pitéu...


Na véspera, fazia o grupo o seu descanso, aproximou-se um rinoceronte. Olhou-nos com um ar indiferente a meia dúzia de metros e seguiu a sua vidinha, naquele corpo de antes da criação do mundo. Acontecera o mesmo com um elefante trombudo que, de tanta proximidade, quase nos aquecia a nuca com um bafo quente. A hiena esteve à distância de dois metros; ao gnu quase lhe vi a cor dos olhos; distingui, claramente, o código de barras da zebra.


Dir-me-ão, então, queridos leitores, que não há grande diferença entre os habitantes do Zoo lisboeta e a fauna que povoa este espaço imenso. Poderia ter ido a Sete Rios e poupava a destruição de uma mala. Erro! O bicho pode ser o mesmo, ter a mesma mansidão aparente, mas o habitat é que marca a diferença. Aqui vemos o reino animal nos seus domínios, passeando-se com ferocidade ou ligeireza consoante a sua espécie. Apercebemo-nos das rotinas próprias, dos momentos de caça, dos esquemas de fuga, das regras de acasalamento, dos hábitos alimentares.

Compreendemos que o impala (ou um dos seus inúmeros primos direitos) confraterniza com o babuíno – não porque lhe aprecie a traquinice, mas porque o macaco é um excelente alerta para a presença de predadores; deparamo-nos, a todo o momento, com a fúria destruidora do elefante, que derruba árvores por onde passa para comer uma ramagem carnuda lá do alto; vemos, quase, a obediência da hiena jovem, que permanece na sua toca até que a mãe regresse da caça; descortinamos o piar de alerta dos pássaros e os animais que caçam apenas de noite, como se fossem homens viciados em bas fonds.



Fazer um game viewing é muito mais do que ver a girafa, o mocho, o ginete ou o hipopótamo. É estar ali, onde tudo se passa, ver o mato e a savana, o espaço e a cor (sempre as mesmas referências), o cheiro e a luz, o sol a pôr-se por trás das acácias, a brisa do fim da tarde a agitar as folhas do mopane, o calor confortável do meio do dia a contrastar com o frio tremendo da noite, a paisagem verdejante ou desoladoramente lunar. Fazer um game viewing é sentir, também, a frustração de não ter visto o leopardo, o único dos big five que não se quis mostrar… O que fizemos foi mais do que encontrar bicharada escondida numa ramagem, a assomar por detrás de uma árvore, a escapulir-se na margem de um rio seco.


Por último, mas não menos importante, fazer um game viewing também é sair do jipe e, na orla de um charco, à vista de uma bola amarela que se põe no fio do horizonte, beber um gin and tonic, e realizar que nem tudo se perdeu neste país que já se chamou Rodésia.

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