31 outubro 2017

Das superstições



O filme acima, vencedor de um prémio de curtas metragens num festival finlandês, foi-me enviado por mão amiga: falamos de um filme que retrata uma noite na vida dos forcados de Montemor-o-Novo. 

O tema forcados e toiros daria pano para mangas e não estou certo de querer dar para esse peditório. Gosto de corridas de toiros e, nas portuguesas, gosto dos forcados, porque me fala de destemor, de ousadia, de gozo, de risco, de algo que é nosso. Falamos também de dor e sofrimento, para os próprios e para os mais próximos, como aconteceu há pouco tempo com um rapaz filho de gente minha amiga. Gosto de corridas de toiros em Espanha, onde não vou há anos, e pouco ou nada sigo pela televisão. Gosto da estética, também do risco, da tradição que se mantém, da beleza em desuso no capote, da técnica da muleta, em pormenores mínimos de arrojo ou fantasia. O resto - a morte mais ou menos bárbara do toiro, o desacerto sanguinário de uma estocada mal dada, o aço a bater no osso ou os picadores mais virulentos - tudo isso faz parte de uma barbárie que me habita, para a qual não tenho explicação, remorso ou defesa.

O filme acima, e que é o cerne deste post, tem uma curiosidade, uma minudência, um pormenor desinteressante para a comunalidade das pessoas. Não falo do destemor, do prémio, da prontidão da entreajuda. Falo da superstição. Talvez não haja actividade pública com uma superstição religiosa tão arreigada como a festa de toiros. O cantor de ópera tem superstições, o actor de teatro também, talvez mesmo o dançarino de salão. Mas o forcado, o toureiro, o cavaleiro tauromáquico, têm uma superstição religiosa fortíssima e, por isso, surpreendente. A superstição e a religião não casam bem. Ou não fazem um casamento elevado, talvez. Ter fé é diferente de ter uma fezada. Rezamos para pedir força e técnica, para estarmos à altura da situação, não sermos vencidos por nada que não seja elevado. Rezamos, seguramente, na esperança de que Deus nos ampare naquela noite, mesmo sabendo que Deus deixa que aconteça, não tem uma intervenção directa no sucesso ou no fracasso daquela pega. 

A superstição é diferente, é baixar os olhos para os santinhos e não elevar os olhos a Deus. A superstição é dar importância à duplicação ou triplicação do sinal da cruz, o beijo no polegar ou em qualquer outra parte da mão; é repetir rezinhas aos santos protectores da jaqueta de ramagens, é cantar em latim por via da fonética, não do entendimento da linguagem. O que me impressionou neste filme foi a superstição religiosa de gente que tem vinte anos, pouco mais. Alguns, seguramente, com frequências universitárias, filhos (alguns) de gente que viu mundo, que deu educações lúcidas, que levou os filhos à catequese, que frequenta igrejas aos domingos. Espantou-me, com todo o respeito e admiração que tenho por estes rapazes, que perpetuem uma tradição bizarra que é, de alguma modo, incompatível com um certo discernimento.   

Gosto dos forcados, das pegas, do destemor e da arte. Mas preferia não ver gente nova a beijar santinhos ou dedos. Tudo o resto é fantástico.

JdB

30 outubro 2017

Para o ATM

Hoje mesmo, por alturas do aniversário do ATM, mas em 2008, escrevi o texto abaixo.

Descobri em A. características que não são vulgares na generalidade dos homens da minha geração, em particular a sensibilidade para algumas assuntos e a desinibição para outros. Numa sociedade em que, como dizia Álvaro de Campos, "nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo", foi gratificante encontrar em A. uma alma atenta, perspicaz e amiga, que encara a vitória e a derrota alheias, a alegria e a tristeza no seu semelhante, o riso e o choro no próximo como as duas faces de uma mesma moeda que todos usamos no bolso. Ao longo das inúmeras conversas que tivemos nos últimos anos teve sempre a capacidade de olhar para além do desfocado onde muitas vezes nos quedamos por falta de intuição – ou mesmo de paciência - sem nunca perder de vista a frontalidade com que se dizem algumas coisas, sabendo que escuta activa nem sempre significa escuta feliz.

Passaram-se nove anos. Do texto não tiraria uma palavra, acrescentaria outras tantas. Poderia adjectivar, que pecaria sempre por defeito - e adjectivaria por gosto, não no sentido do elogio ao que ele é, mas de elogio ao que ele é para quem quer que ele seja, passe a frase vagamente críptica. Acima de tudo, foram nove anos de muita partilha, porque nestes nove anos muito água passou por baixo das pontes da vida. Almoçámos muito, tomámos muitas águas ao fim da tarde, conversámos muito sobre tudo, sobre as esperanças e as desilusões, sobre os meus estudos, sobre as vidas profissionais, sobre os erros do caminho. Conversar nem sempre é só conversar - por vezes é um diálogo que permite resolver dúvidas, escolher caminhos (ou apenas ver possíveis caminhos), parar para pensar, tirar um caroço entalado na glote que é a nossa vida, olhar para as coisas por um ângulo diferente.

Ao ATM agradeço muito - a inteligência, a cultura, o humor, a provocação, a disponibilidade, a improbabilidade da nossa amizade. De entre aquilo que quero revelar, perdoo-lhe a desistência da escrita neste estabelecimento, por vezes até a desistência do exercício fulgurante do raciocínio. Aprendemos muito cedo na Bíblia a parábola dos talentos, e eu acredito nas parábolas...

Muito havia a dizer, mas há que ser parcimonioso - nem que seja por prudência... 

Um abraço de parabéns.

JdB

29 outubro 2017

30º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 22,34-40

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus, ouvindo dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus,
reuniram-se em grupo,
e um doutor da Lei perguntou a Jesus, para O experimentar:
«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?».
Jesus respondeu:
«‘Amarás o Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma
e com todo o teu espírito’.
Este é o maior e o primeiro mandamento.
O segundo, porém, é semelhante a este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Nestes dois mandamentos se resumem
toda a Lei e os Profetas».

28 outubro 2017

Pensamentos Impensados

Género não alimentício
Hermafrodita muda de sexo.

Assim é que é falar
Há uns anos, Hermínia Silva cantava: hei-de fazer de Portugal pequenino um Portugal ainda maior.

Carinhos
População vive a braços com... Em contrapartida, Marcelo vive com abraços.

TV
A televisão é uma maçada, mas tenho um canal preferido, o canal zapping.

Neologismo
Se existe a palavra acórdão, porque não a palavra adormeção.

Sentenças
Prisão de ventre resulta sempre numa luta intestina.

Dez portos
Empatar um jogo será uma questão de empatia?

SdB (I)

27 outubro 2017

Pensamento Impensado

Fogo de vista
A propósito dos fogos o Governo vai criar medidas de emergência.
As anteriores eram de submergência.

SdB (I)

Frases mudas *

Enquanto a maioria das pessoas tem sorte se tiver um cliché que as caracterize na perfeição, para o protagonista desta história existem três ou quatro frases-feitas que lhe assentam como uma luva. Onde quer que fosse, entrava mudo e saía caladoNão tugia nem mugia, e tudo o que lhe aconteceu na vida começou e acabou sem ai nem ui. Nunca ninguém lhe ouviu uma queixa, um protesto ou uma frase mais exaltada. Mas também nunca disse um elogio, uma palavra simpática a um amigo ou promessas eternas a um amor de juventude. Na verdade, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse.

Ao contrário da maioria dos bebés, nasceu sem os choros e gritos habituais, e esse silêncio inicial manteve-o até à morte. Os pais fizeram todos os exames, testes e análises possíveis. Levaram-no a médicos, médiuns e psicólogos. Ninguém descobriu qualquer problema. Só restava uma hipótese: o silêncio crónico era opcional. Não falava porque não queria.

Ninguém sabe se foi o nome que lhe deu o conteúdo ou ele que deu sentido ao seu nome. A única certeza é que Carlos Calado era mudo.

Mas essa sua característica não o impediu de ter uma vida escolar normal. Aprendeu as letras e os números. A escrever e a fazer contas. Tão bem ou melhor, já que era mais calado do que os colegas de turma. O maior problema foi com a leitura. Como não lia alto era difícil perceber se o sabia fazer ou não. Os seus professores não se preocuparam muito com isso. 'Nunca há de ganhar a vida como orador', pensavam eles.

A sua mudez também não o impediu de formar família. Conheceu uma mulher que trabalhava como telefonista numa empresa movimentada, e cujo maior desejo era o de, após o trabalho, voltar para casa e ter à espera alguém que não quisesse conversar. Era o casamento perfeito. E viveram neste arranjo ideal até ao dia em que ela fez uma descoberta inesperada.

Quando a telefonista se preparava para se deitar, já o Carlos estava naquele estado intermédio de vigília, fez uma pergunta alto para si própria. E, em vez de ouvir apenas o seu pensamento como resposta, escuta uma voz entaramelada atrás de si. Faz outra pergunta e acontece o mesmo. Era o Carlos que, no seu sono, respondia inconscientemente às perguntas que ela fazia de si para si. Uma pergunta atirada para o ar dava direito a uma resposta meio adormecida.

A partir dessa descoberta, todas as noites passou a fazer o mesmo. Fingia arrumações e ocupações e, quando Carlos estava no estado sonolento de vigília, começavam as perguntas. Foi com isto que começaram a surgir as curvas num caminho que, até esse ponto, tinha sido feito suavemente em linha recta.

Começou pela voz que nunca ninguém tinha ouvido. Era aguda e esganiçada, incomodativa. E acabou no conteúdo das respostas. Descobriu coisas que não queria, percebeu que muitas ideias que tinha sobre ele estavam erradas. O Carlos mudo, com quem partilhava o silêncio durante o jantar, era diferente do Carlos que falava durante o sono. E este facto foi o suficiente para que ela decidisse pôr um ponto final na relação.

Decidiu sair de casa e acabar tudo. Quando lhe comunicou a decisão, o Carlos perguntou, com a ajuda de um lápis e de um papel, 'porquê?'. E a telefonista limitou-se a responder-lhe 'pelas coisas que me disseste'.

SdB (III)

* publicado originalmente em 22.11.2010

26 outubro 2017

Poemas dos dias que correm (enviado por mão muito amiga)

A verdade é que fomos

A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humilde
A verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelas
A verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.
Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para que amando eu possa conservar
o meu coração puro.
As ruas hoje pareciam mais largas
e mais claras
As casas e as pessoas
pareciam diferentes
Foi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.
Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justas
E fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.
O amor substitui
o Sol — que tudo ilumina.
Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.
Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonha
Vês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua alma
Por que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?

Raúl de Carvalho, in “Obras de Raul de Carvalho”

25 outubro 2017

Vai um gin do Peter’s?

PALÁCIO DAS NECESSIDADES

A actual sede de um dos Ministérios mais antigos do país – o dos Negócios Estrangeiros (MNE) – fiel à designação e às mesmas responsabilidades desde os primórdios da IV Dinastia, vale bem uma visita, ao menos virtual [link no final].

Foi durante a I República, em 1916, que o MNE se instalou no palácio rosa das Necessidades, que fora habitado por D.Maria II, pelo seu filho D.Pedro V e pelos últimos reis de Portugal: D.Carlos e D.Manuel II.

1908 - chegada de D.Manuel II ao Palácio, após a cerimónia de juramento e proclamação como Rei de Portugal decorrida em S. Bento. (Fotogr. de Joshua Benoliel, pertencente ao  Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa.)

Note-se que, desde 1761, a outra residência oficial dos monarcas portugueses era o Palácio da Ajuda, erigido em «pedra e cal» a mando de D.José, após o terramoto de 1755. Devorado pelas chamas, em 1794, a demorada reconstrução recomeçou em 1796, ficando habitável a partir de 1826. Porém, o maior impulso à Ajuda dá-se em 1862, no reinado de D.Luís I (1838-1889), casado com D.Maria Pia - princesa de Sabóia. 

Por seu turno, o complexo das Necessidades – composto por palácio e convento – desenvolveu-se em simultâneo, por iniciativa de D.João V, a partir da pequena ermida construída pela piedade popular, no séc.XVI, para acolher uma imagem de Maria venerada por acudir às aflições dos que a Ela se confiavam, cunhando-lhe o nome de «Senhora das Necessidades». 

A origem da devoção remonta ao despovoamento de Lisboa provocado pelo surto da Grande Peste (1569). Uma família de tecelões, que fugira para a Ericeira, sentiu-se confortada com a descoberta de uma imagem de Nossa Senhora da Saúde, numa ermida junto ao mar. Quando puderam regressar à capital, trouxeram-na consigo e arranjaram um terreno para edificar uma capelinha aberto ao culto, que foi financiada pela esmola dos mais simples. Em 1613, já estava disseminada a invocação «das Necessidades», que não parava de atrair peregrinos. Mais tarde, a devoção estendeu-se a D.Pedro II e a sua mulher, D.Isabel de Sabóia, que mandaram erigir uma tribuna ricamente ornamentada. Ao adoecer, o rei pediu para receber a imagem, ficando surpreendido pela inexplicável cura, que logo lhe atribuiu. 

Com o seu filho, D.João V, ocorre outra cura imprevista, ao recuperar de uma paralisia súbita do lado esquerdo (em 1742), depois de lhe trazerem a imagem milagrosa. Além de não se separar mais da imagem, em agradecimento: transforma a ermida em Igreja, edifica no espaço contíguo um hospício e um convento, entregando-o à congregação do Oratório de S.Filipe Néri. Os monges oratorianos instalam-se em 1757, abrindo também uma escola com os estudos completos até à universidade, além de uma portentosa biblioteca, que maravilhou estrangeiros ilustres que passaram por Portugal. Com a extinção das Ordens Religiosas, o recheio bibliotecário foi transferido para a Ajuda. 

O rei de cognome «Magnânimo» manda igualmente levantar ali um palácio, usado para recepções e alojar convidados de honra, mediante autorização real (a partir do reinado da filha de D.José – D.Maria I). Para enquadrar a fachada sul, cria o Largo das Necessidades com um jardim longitudinal e o chafariz homónimo (1747), concebido pelo arquitecto Caetano Tomás de Sousa. Este conjunto esculpido em mármore inclui um tanque rematado por lobos ornados de mascarões, de onde jorram água. No remate superior assoma uma custódia encimada por uma cruz dourada.

A primeira monarca a residir no Paço Real das Necessidades foi a filha de D.Pedro IV – D.Maria II (Brasil, 1819-1853, Lisboa, no Palácio) – de reinado muito atribulado, em duas fases diferentes, assolado pela Guerra Civil entre liberais e absolutistas, e a turbulência dos golpes militares em contínuo, como a revolução de Setembro, a Belenzada, a Revolta dos Marechais, a Maria da Fonte e a Patuleia. Também a vida familiar foi intensa: casou duas vezes, a segunda depois de enviuvar. Deu à luz 11 filhos, o que lhe valeu o cognome de «A Educadora» ou «A Boa Mãe». Morreu aos 34 anos, no parto de um bebé que também não subsistiu. 


Maria II, retratada por Thomas Lawrence, 1829. Tela da Royal Collection britânica

O último monarca residente no palácio, D.Manuel II, fugiu das Necessidades para Mafra, após os bombardeamentos ao paço, a 5 de Outubro de 1910, no rescaldo da proclamação da República. Dali, foi levado para Gibraltar, rumando depois para Londres. 

Com o novo regime republicano, grande parte do mobiliário do palácio foi transferido para o Museu Nacional de Arte Antiga, embora tenham permanecido os lustres, a talha dourada e prateada, os espelhos, a decoração de paredes e tecto em estuque feita por Ernesto Rusconi (1846), as inúmeras telas com retratos e mapas antigos, os soberbos lambris de azulejo na parte conventual, os mármores, as estátuas de Giusti e de José de Almeida na Capela das Necessidades, os jardins de buxo à francesa por onde passeiam pavões de penugem azul luminosa, a tapada repleta de espécies exóticas, lagos, pavilhão de caça, caminhos de terra batida e recantos variados.

A antecipar a visita virtual ao Palácio, destacam-se com setas os ícones que permitem zoom sobre as várias parcelas de cada imagem com legenda específica (na «lupa») e a identificação geral de cada diapositivo no «i  » situado em baixo, ao centro, como assinalado: 

Em cima, a SETA VERDE assinala uma das «lupas», que pode ser activada para se aceder a informação sobre a parcela/peça associada ao ícone. Em baixo, ao centro, a SETE ENCARNADA indica o ícone «i  » com a designação e a função dos aposentos mostrados na imagem. 

A visita reparte-se entre as dependências do palácio e do convento, que incluem alguns dos patamares dos jardins de buxo, concluindo com as salas modernizadas da «ala nascente». Infelizmente, é omisso em relação à Capela, cuja sumptuosidade dos paramentos religiosos e o esplendor da decoração, à base de tapeçarias persas e telas monumentais, fascinou William Beckford, segundo registou no seu diário (1797):  


Com sobriedade e equilíbrio, o magnífico Paço das Necessidades constitui um digno cartão de visita dos mais altos dignitários estrangeiros, que visitam Portugal, constantemente. Na fachada sul, onde também está encrustada a Capela, o grande edifício rosa abre-se sobre o Tejo, bordejado por um remate profusamente jardinado e de vista desafogada. Lisboa no seu melhor!

Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

24 outubro 2017

Duas Últimas

Da minha sequência de posts sobre a viagem a Washington falei brevemente sobre a viagem de avião. Não há muito a dizer, a não ser recorrer a adjectivos / advérbios / expressões do tipo: apertado, desconfortável, dores no cóccix, comer com a tigela junto à boca, interminável, inumano, humilhante, francês. De facto, o avião é um meio de transporte onde o conforto reside na executiva, porque na económica tudo é mau. 

De Paris para Washington viajei na coxia. À minha frente um americano volumoso e mal encarado usou de um direito: reclinar a cadeira sem um mínimo de consideração por quem ia atrás. Resultado: não consegui ler, abrir o computador, escrever. Oito-horas-oito a ver filmes, a gemer, a abanar a cadeira do americano que não reagiu.

Vi o filme-biografia de Elis Regina. Pouco conhecia dela, a não ser a música, a filha e o fim trágico. Tudo o resto - o começo, os casamentos, a infelicidade, os excessos, as críticas, a política, tudo o resto, dizia, era uma massa informe de informações vagas. Gostei de ver e de ouvir. 

Deixo-vos com Elis Regina, numa música particularmente bonita, tornada conhecida em Portugal por causa de uma novela - O Casarão, parece-me. E Elis Regina só passou pelo estabelecimento uma vez,  há quatro anos, pelo que era altura de repetir.

Em podendo vejam o filme que há pouco tempo passava num cinema perto de si.

JdB

  

23 outubro 2017

Pensamento Impensado

Efes
Há anos dizia-se que Portugal era o país dos três F's; Fátima, futebol e fado.
Agora tem mais três: fogos, floresta e falhas.

SdB (I)

Sobre Nádia Piazza

Muito atrasado, apesar os elogios que me foram chegando, vi a entrevista de Nádia Piazza, a responsável pela Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, ao canal 3 da RTP. Também me levou a isso o telefonema de uma boa amiga: "já viu a entrevista? Pensei muito em si...". Fui ver, claro. Para quem não sabe (e admito que poucos não saibam) Nádia Piazza é brasileira de origem italiana, a viver há 18 anos em Portugal, e perdeu um filho de cinco anos naquele devastador incêndio de há alguns meses. 

Podia ter visto os primeiros cinco minutos e já tinha dado o tempo por bem empregue. Nádia Piazza disse o essencial relativamente à sua perda: dar um sentido às coisas, transformar a dor em algo positivo, não ficar agarrada a uma memória e a uma depressão. No fundo, perguntar para quê?, em vez de porquê?. Mas a entrevista não vale apenas pela reacção de uma mulher nova e bonita a uma perda brutal. A entrevista vale pelo sossego que aparente ter, aliado a uma inteligência que seguramente tem. Vale pela mansidão forte, segura e acutilante das palavras e dos raciocínios. Não há agressividade, revolta, frases inflamadas. Há dor, uma dor muito grande, transformada em crítica construtiva, em desejo de construir um mundo melhor, mesmo que em cima das cinzas do seu filho.

A entrevista de Nádia Piazza é uma lição: não de total contenção de sentimentos, porque chora e tem micro-segundos de paragem no seu discurso, sinais subtis de comunicação não verbal; não de total contenção de críticas, porque fala de amadorismo, de falta de profissionalismo, de um pedido de desculpa formal que não surgiu, de tudo o que não se fez e podia - e devia - ter feito. A entrevista de Nádia é uma lição de sentido de vida, de enfrentamento do desgosto (falar de um filho que morre carbonizado ao colo do pai é de uma violência interior que não imagino), de capacidade de (re)construção. Mas é também uma lição de lucidez "técnica" - do que há por fazer, do que deve fazer-se para que nada disto se repita de novo. 

Ver e ouvir Nádia Piazza é muito mais do que ver e ouvir o desgosto brutal de uma mãe. É ver e ouvir o desgosto brutal dessa mãe posto ao serviço do próximo. 

JdB     

22 outubro 2017

29º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 22,15-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus reuniram-se para deliberar
sobre a maneira de surpreender Jesus no que dissesse.
Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos,
juntamente com os herodianos, e disseram-Lhe:
«Mestre, sabemos que és sincero
e que ensinas, segundo a verdade, o caminho de Deus,
sem Te deixares influenciar por ninguém,
pois não fazes acepção de pessoas.
Diz-nos o teu parecer:
É lícito ou não pagar tributo a César?».
Jesus, conhecendo a sua malícia, respondeu:
«Porque Me tentais, hipócritas?
Mostrai-me a moeda do tributo».
Eles apresentaram-Lhe um denário,
e Jesus perguntou:
«De quem é esta imagem e esta inscrição?».
Eles responderam: «De César».
Disse-lhes Jesus:
«Então, daí a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus».

21 outubro 2017

Pensamentos Impensados

Medalhas
António Costa precisa de oiro e prata; bronze já tem.

Melómano
Só lhe faltava a Sinfonia Incompleta para ter as obras completas de Schubert.

Falecimentos
Se não tem onde cair morto, não caia.

Anexim
Quem o alheio veste... é porque tem as mesmas medidas.

Petit nom
O presidente da Coreia do Norte chama-se Joaquim; Kim para os amigos.

Mezinhas
Com o aproximar do Inverno, recomendam~se os rebuçados peitoris D. Julieta de Verona.

Novos estados
Os bi-sexuais podem ser considerados híbridos?

Penas
Pessoa a quem cortam a electricidade é um electrocortado.

SdB (I)

20 outubro 2017

Poemas dos dias que correm

Quadras da Minha Vida

Os ecos nos meus sentidos
Dos meus afectos doentes
São mais longos, mais compridos
Do que rastos de serpentes.

Nasci profundo e pegado
A turbilhões de aflição:
Na cara trago estampado
O meu perfil de obsessão.

Não creio que possa amar
Nem neste mundo ter jeito
De me encostar a outro leito
Sem desatar a chorar.

Enterro os dias e os ais,
Sou uma pilheira de mortos,
Não tenho espaço pra mais!
Que se comam uns aos outros...

Mário Saa [18 Jun 1893 - 23 Jan 1971], in 'A Poesia da Presença'

***

Do Primeiro Regresso

Escuta, meu Amor, quando eu voltar
De tão longe, e avistar de novo o Tejo,
O meu Restelo que em saudades vejo
Como outra nova Índia a conquistar;

Quando a minha alma inquieta sossegar
Este voo indomável, num adejo,
E o amor e o céu e Deus, vivos num beijo,
Iluminarem todo o nosso lar;

Quando, meu Santo Amor, voltar o dia
Do primeiro regresso, e a aleluia
Madrugar tua alma anoitecida...

Hás-de embalar-me sobre o teu regaço
Arrolar, encantar o meu cansaço...
E então será o meu regresso à Vida!

Augusto Casimiro [11 Mai 1889 - 23 Set 1967], in 'Primavera de Deus'

19 outubro 2017

Pensamento Impensado

Aparição-conferência-exposição

Primeiro ministro: bla bla, bla bla bla, bla; bla bla bla. Estou à vossa disposição.
Jornalista: bla bla. bla bla bla? bla bla bla. bla bla, bla?
Primeiro ministro: bla, bla bla bla. bla bla bla bla. Um grande bla bla bla para vocês todos.
Fim de aparição

SdB (I)

Duas Últimas

Na passada 6ª feira assisti na Meo Arena a um concerto dos/da "Resistência", comemorativo dos seus 25 anos de carreira.

Perante uma casa composta mas longe de estar cheia, que isso de encher aquele gigantesco pavilhão é para poucos, o grupo passou longamente em revista os seus maiores êxitos, quase todos resultantes de interpretações de músicas de terceiros: UHF, Delfins, J Palma, J Afonso, Rádio Macau, R Reininho, Quinta do Bill.

Gostei, como sempre que ouvi este grupo integralmente tributário da música portuguesa. Bom gosto das músicas selecionadas, versões muito próprias das mesmas, destacando-se as magnificas instrumentações (Pedro Joia, Tim, etc..), o ponto forte da banda. As vozes, bastante aceitáveis, foram melhoradas pela presença (a primeira vez) de 2 convidados, Raquel Tavares e A Zambujo, excelentes cada um ao seu estilo.

Apreciei sobremaneira a interpretação de "Cantiga de Amor", dos Radio Macau.

Aqui vos deixo com duas versões da música, a primeira muito idêntica à que ouvi, a segunda a original, da banda de Algueirão e da sua incontornável Xana.

Espero que também gostem.

fq



18 outubro 2017

Textos dos dias que correm

A Busca da Felicidade ou do Sofrimento

O homem recusa o mundo tal como ele é, sem aceitar o eximir-se a esse mesmo mundo. Efectivamente os homens gostam do mundo e, na sua imensa maioria, não querem abandoná-lo. Longe de quererem esquecê-lo, sofrem, sempre, pelo contrário, por não poderem possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo que são, exilados na sua própria pátria. Excepto nos momentos fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles imperfeita. Os seus actos escapam-lhes noutros actos; voltam a julgá-los assumindo feições inesperadas; fogem, como a água de Tântalo, para um estuário ainda desconhecido. Conhecer o estuário, dominar o curso do rio, possuir enfim a vida como destino, eis a sua verdadeira nostalgia, no ponto mais fechado da sua pátria. Mas essa visão que, ao menos no conhecimento, finalmente os reconciliaria consigo próprios, não pode surgir; se tal acontecer, será nesse momento fugitivo que é a morte; tudo nela termina. Para se ser uma vez no mundo, é preciso deixar de ser para sempre. 

Neste ponto nasce essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Apercebendo-se exteriormente dessas existências, emprestam-lhes uma coerência e uma unidade que elas não podem ter, na verdade, mas que ao observador parecem evidentes. Este não vê mais que a linha mais elevada dessas vidas, sem adquirir consciência do pormenor que as vai minando. Então fazemos arte sobre essas existências. Romanceamo-las de maneira elementar. Cada um, nesse sentido, procura fazer da sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor perdure e sabemos que tal não acontece; e ainda que, por milagre, ele pudesse durar uma vida inteira, seria ainda assim um amor imperfeito. Talvez que, nesta insaciável necessidade de subsistir, nós compreendêssemos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que, por vezes, as grandes almas se sentem menos apavoradas pelo sofrimento do que pelo facto de este não durar. À falta de uma felicidade incansável, um longo sofrimento ao menos constituiria um destino. Mas não; as nossas piores torturas terão um dia de acabar. Certa manhã, após tantos desesperos, uma irreprimível vontade de viver virá anunciar-nos que tudo acabou e que o sofrimento não possui mais sentido do que a felicidade. 

Albert Camus, in "O Homem Revoltado"

17 outubro 2017

Crónica de um viajante a Washington (5) [ou também Duas Últimas]


Mais do que ilustrar onde estarei daqui a um ano se me mantiver nestas funções nacionais e internacionais, importa referir a legenda da fotografia junto ao cotovelo esquerdo do dançarino: no child should die of cancer. Para os médicos, este ano pouco menos de 2000 na conferência, a motivação é esta. Para nós, Pais (mas também voluntários, sobreviventes, profissionais) a motivação é principalmente esta, mas também nos cabe o conforto quando o herói não sai a assobiar em direcção ao por do sol, mas fica pelo caminho. 

Hoje deixo-vos com música que fui ouvindo durante a semana - num táxi, num jantar, numa conversa. Música boa, que merece ser ouvida.

JdB
  


16 outubro 2017

Crónica de um viajante a Washington (4)

Washington
Enfiado quase sempre num hotel, pouco conheci da cidade, com excepção de viagens de Uber (chique a valer) entre pontos de origem e destino. Não me parece uma cidade que tenha muito para ver do ponto de vista arquitectónico. Terá, seguramente, do ponto de vista dos museus. É grande, ampla, organizada e com boas estradas - estamos, afinal, na capital dos EUA. 

É uma cidade cara, onde um café custa 2,5 USD, um pequeno-almoço básico 10 USD. Mas, como em muitos aspectos dos EUA, tem curiosidades. Ontem, por exemplo, fui convidado para jantar com um colega sul-africano e três chineses (um casal de pais e um sobrevivente). Fomos a um restaurante onde o preço médio dos pratos era de 28 a 30 USD, uma caneca de cerveja quase 7. O restaurante tinha bom aspecto, a comida era boa. Mas tinha individuais de papel...



Cosmos Club (I)
O jantar de gala do CCI (organização internacional a que pertenço) realizou-se no Cosmos Club que, segundo me dizem, é um clube de homens, selecto, restrito a pessoas que se tenham notabilizado de alguma forma: cientistas, militares de alta patente, prémios Nobel (sim, sim...), políticos, etc. Uma espécie de Turf português em que a aristocracia é do intelecto, não do sangue... O dress code era claro: casaco e gravata para os homens, vestido ou calças elegantes (há uma expressão de que não me lembro) para senhoras. Havia uma elegância generalizada, com um colorido dado pelos trajes regionais da Índia, do Bangla Desh ou da Indonésia. Um colega do Gana apresentou-se de smoking. 

Cosmos Club (II)
Este parágrafo é ingénuo, eu sei, mas de uma ingenuidade que não deixa de me comover. O jantar no Cosmos Clube foi seguido de um momento musical: um conjunto (banda, como se diz agora) Motown a tocar e a cantar músicas "antigas", mas que ainda agitam corpos. Num repente, na pista improvisada, o israelita dançava com a etíope, o egípcio com a chilena, os ganeses ou os indonésios num grupo indistinto, a rapariga elegante e quase seráfica do Bangla Desh era puxada para a pista com um sorriso discreto  Eu, cavalheiro português, dancei um slow (sim, sim, é assim que se diz) com a anfitriã, que me parecia desejosa de agitar o corpo sem ter com quem. Dancei My Girl, uma música que me pareceu particularmente adequada para dançar com uma rapariga que tem oito filhos e foi, dizem-me posteriormente, campeã (ou praticante apenas) de culturismo.

 

Dançar continua a ser, para mim, um movimento afectivo. Sou menos entusiasta de grupos, mas é gratificante pensar que pessoas que politicamente se poderiam odiar, dançam umas com as outras como se não houvesse amanhã, pessoas que riem e se agitam antes de voltar à dureza das vidas de volta das crianças com cancro. Dançar tem, de facto, uma dimensão primitiva e profundamente libertadora.

Discurso americano [ou também Cosmos Clube (III)]
A anfitriã é americana, obviamente. Tudo no discurso dela é americano. A América é um grande país, ajuda muitos países africanos (e disse isto a uma etíope, porque os EUA ajudam muito a Etiópia...); este clube é muito restrito, os lustres vieram de França e custaram não sei quantos milhares de dólares, ainda esta semana despedi quatro pessoas porque aqui felizmente é fácil despedir...

Almoço rapidamente no MacDonald's. Deixo passar uma família de afro-americanos, volumosos e cheios de crianças. Dizem-me simpaticamente: thank you. Respondo simpaticamente you're welcome. Há um momento de espanto com a minha correcção e murmuram entre si. Uma rapariga nova, que parecia ter um ananás na cabeça não resiste a desejar-me: have yourself a nice day...

JdB

15 outubro 2017

28º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 22,1-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se de novo
aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo
e, falando em parábolas, disse-lhes:
«O reino dos Céus pode comparar-se a um rei
que preparou um banquete nupcial para o seu filho.
Mandou os servos chamar os convidados para as bodas,
mas eles não quiseram vir.
Mandou ainda outros servos, ordenando-lhes:
‘Dizei aos convidados:
Preparei o meu banquete, os bois e os cevados foram abatidos,
tudo está pronto. Vinde às bodas’.
Mas eles, sem fazerem caso,
foram um para o seu campo e outro para o seu negócio;
os outros apoderaram-se dos servos,
trataram-nos mal e mataram-nos.
O rei ficou muito indignado e enviou os seus exércitos,
que acabaram com aqueles assassinos e incendiaram a cidade.
Disse então aos servos:
‘O banquete está pronto, mas os convidados não eram dignos.
Ide às encruzilhadas dos caminhos
e convidai para as bodas todos os que encontrardes’.
Então os servos, saindo pelos caminhos,
reuniram todos os que encontraram, maus e bons.
E a sala do banquete encheu-se de convidados.
O rei, quando entrou para ver os convidados,
viu um homem que não estava vestido com o traje nupcial.
E disse-lhe:
‘Amigo, como entraste aqui sem o traje nupcial?’.
Mas ele ficou calado.
O rei disse então aos servos:
‘Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o às trevas exteriores;
aí haverá choro e ranger de dentes’.
Na verdade, muitos são os chamados,
mas poucos os escolhidos».

14 outubro 2017

Pensamentos Impensados

Promoções de Outono
Chamam ao Ronaldo capitão, não sei porquê; quem comanda 10 homens é um sargento.

Lavagens
Vi Assunção Cristas a receber luvas e a branquear a capital, e era tudo legal.

Bola
Os jogadores que marcaram os golos no Portugal-Suiça chutaram de tal maneira que a bola foi parar à Rússia.

Negócios
O  que é que o Zezé Camarinha faz na época baixa? Vende camas? Novas ou usadas?

Parentescos
Auto-golo deve ser parente de auto-clismo: ambos são um balde de água fria.

Partidos-quebrados
O Partido Comunista consegue levar a dele avante? Só se for a vender o jornal.

Bok-se
Os pigmeus não jogam boxe, pois só dariam golpes baixos.

Cata vento
Foi considerado um desmancha-prazeres quando decidiu ir para o Alto de S. João.

SdB (I)

13 outubro 2017

Crónica de um viajante a Washington (3)

Jardim Botânico, Washington (pormenor visto por um iPhone)
4ª feira foi dia de meet and greet. Durante duas horas, normalmente, os representantes das associações, os sobreviventes, os Pais, encontram-se para confraternizar. Conhecem-se pessoas, reveem-se pessoas, conversa-se com amigos - sobre a vida, sobre as dificuldades das associações, sobre o futuro, ou sobre o que se supõe ser um ponto de viragem nesta associação global. Hoje em dia fala-se menos de casos pessoais; fala-se mais de estratégia, de caminhos a seguir, de opções funcionais ou organizativas, não porque tenhamos perdido a dimensão humana, mas porque a dimensão humana tem hoje outros requisitos. Todos queremos prestar um melhor serviço às crianças / jovens com cancro: queremos eliminar as enormes diferenças no seio da Europa, não queremos perder de vista as dificuldades de África, queremos trabalhar mais com os médicos, estabelecer boas parcerias. Mas todos temos, muito naturalmente, a nossa visão do mundo, o nosso estilo pessoal, a ideia do que é mais importante neste momento. E tudo isso, para o melhor e para o pior, assume uma dimensão maior do que há 10 anos, quando comecei nestas andanças internacionais. Há, talvez, uma necessidade maior de profissionalismo que precisa de ser temperada com uma emotividade saudável.

***

Saio do hotel em direcção ao meet and greet. Washington está sob uma chuvinha miúda, quase apenas humidade. Apanhamos um taxi, porque há uma senhora australiana entre o grupo de quatro. Vou à frente na viatura, porque sou muito grande e têm consideração por mim - ou por eles... No tablier, uma estatueta de Nossa Senhora e uma imagem de Santa Teresa de Ávila, o que não deixa de ser curioso. Pergunto por isso ao motorista de que nacionalidade é. Etíope, responde-me; ortodoxo. Faz sentido.

O motorista é simpático, reservado, com uma pronúncia difícil e um tom de voz muito baixo. Segue calado e põe música com um volume suficiente para se ouvir com conforto. Durante 20 minutos ouvimos Carlos Santana (oye como va e samba pa ti, entre outras), depois Temptations (papa was a rolling stone) e, por fim, Ben E King (stand by me). Falamos de música, da boa música daquele tempo, da música que perdura. Acabo por perguntar-lhe a idade: nasceu em 1958, um ano fantástico. Dei por mim a cantarolar tudo, a entusiasmar--me com memórias musicais. Entre o Carlos Santana (de quem me tinha já esquecido) e o que me traz aqui a Washington não há um vazio, apenas um taxista etíope da minha idade - e com muito bom gosto musical.

JdB

12 outubro 2017

Crónica de um viajante a Washington (2)

Ontem cumpriu-se o segundo dia de reuniões da direcção da Childhood Cancer International, a organização que agrega mais de 180 associação de Pais de crianças / jovens com cancro em mais de 90 países.

Estar com estas pessoas é estar, também, com o melhor e o menos bom destas pessoas. Gente que perdeu filhos, que lutou pelas sobrevivência dos filhos num tempo de menos informação, de menos técnica, de menos internet e de menos apoio. Gente que, podendo largar tudo quando os filhos partiram para o céu ou para as suas vidas felizes ou mais limitadas, decidiu ficar e olhar para os outros e pelos outros. Gente que investe dinheiro, tempo, horas de voo e dos seus tempos de lazer numa tentativa de deixar o mundo um lugar melhor. Foi isto que encontrei de volta de uma mesa quando aceitei o desafio de fazer parte da Direcção, depois de já ver tudo isto nas cadeiras anónimas das palestras anuais.

Por trás desta dedicação totalmente louvável, que nalguns casos vem de muito fundo da alma, há a fragilidade humana: a desorganização das reuniões, as necessidades de atenção, as susceptibilidades, os estilos próprios, os desejos de ficar, porque a saída deste ambiente de solidariedade é o confronto com um certo vazio ou um sentido de desemprego. Talvez achasse, na minha ingenuidade, que o facto de trabalharmos para uma causa tão nobre suscitasse desejos de eliminação de vontades ou fraquezas individuais e nos concentrássemos no que nos une. Mas de facto não é assim, e talvez este ano tenha sentido isso com maior acuidade. Sinto-me, pela minha juventude no cargo ou por alguma característica pessoal que não descortino, como um recipiente de queixas alheias: A queixa-se-me de B, que por sua vez se queixa de A mas também de C e talvez de D, que só se queixa de B...

Estou numa organização humana; talvez, num certo sentido, de seres humanos mais fragilizados. Continuo a ser ex-funcionário de uma multinacional que privilegiava a eficiência das reuniões e a disciplina da agenda. Talvez isso, ao contrário da ignorância que é uma benção, seja uma maldição. O resto é simples: nas fraquezas dos outros vejo as minhas, mesmo que sejam diferentes.

JdB

11 outubro 2017

Música e sentido para o dia de hoje

Foi hoje, mas há 28 anos.

Para a minha filha Teresa, porque todos estes anos foram, para já, inesquecíveis.

J

Vai um gin do Peter’s? 

O MILAGRE DO SOL CELEBRADO PELA GULBENKIAN, COM MÚSICA

No centenário das Aparições, o Santuário de Fátima encomendou a dois compositores – Carrapatoso e McMillan – obras de inspiração mariana, que terão estreia absoluta, no dia 13 de Outubro, em Fátima (18h30 na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima) e no dia 15, Domingo, na Gulbenkian (17h00, na zona dos Congressos da sede da Fundação, com entrada livre). 

Nos dois eventos, a orquestra e o coro Gulbenkian actuarão sob a batuta da maestrina Joana Carneiro, coadjuvados pela soprano portuguesa consagrada nos principais palcos do mundo – Elisabete Matos. 

O programa abrange as seguintes peças musicais: «Salve Regina» de Eurico Carrapatoso; «The Sun Danced» da autoria do escocês James MacMillan a evocar o milagre testemunhado por crentes e não-crentes, a 13 de Outubro de 1917; e a Sinfonia n.º 3, op.36, do polaco Henryk Górecki também designada de «Sinfonia das lamentações». Esta obra é a única audível via youtube, porque data de 1976. Com três andamentos, começa pelo canto da solista, a dar voz a um lamento atribuído a Nossa Senhora e escrito no séc.XV. O segundo andamento respeita à mensagem grafitada por uma rapariga de 18 anos na parede de uma prisão da Gestapo, durante a Segunda Guerra Mundial. Compreensivelmente, a primeira palavra é «Mãe», replicando o clamor mais profundo do ser humano, que pede para ser amado! É a essa necessidade prioritária da Humanidade que a Senhora de Fátima se propõe atender, maternalmente, incansavelmente. Por isso, multidões sem fim continuam a acorrer ao Santuário do pequeno povoado português. O terceiro andamento inspira-se na tradição folclórica e narra a busca incessante de uma mãe pelo filho que fora assassinado, numa denúncia directa ao genocídio perpetrada em 1919, durante a insurreição na Silésia. Uma sinfonia de homenagem aos milhões de filhos mortos e de pietás, que resultaram das inúmeras matanças do século mais sangrento da História: 



Na temporada da Gulbenkian, este concerto insere-se numa série que a Fundação intitulou «Entre o Céu e a Terra», visando «criar pontes entre várias obras que exploram a qualidade transcendente daquilo que se encontra para além da razão e da palavra».  A série estende-se a oito concertos, que incidem sobre «crenças e valores presentes na cultura de distintas geografias, das Suites para Violoncelo de Bach à música síria ou ao canto sacro argelino».

Cem anos depois da Mensagem do Céu transmitida a Três Pastorinhos de Aljustrel, é extraordinário a música também querer contribuir para recordar e celebrar uma história feita de imprevistos e improbabilidades, que suplantou as fronteiras de Portugal, chegando aos recantos mais recônditos o planeta. Tudo ao contrário do marketing e da lógica do deve&haver. Um mistério que só no silêncio daquele recinto tocado pelo sagrado, se pode intuir.  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)

10 outubro 2017

Crónica de um viajante a Washington (1)

Cheguei ontem a Washington. Entre sair de casa e entrar no hotel de destino passaram-se 20 horas. Quase 50% passaram-se dentro de um avião apertado, cheio, com gente que dá encontrões, com tripulação que dá encontrões. Em bom resumo, achei o avião indigno de uma viagem de 8 horas. Das viagens longas que fiz este ano, talvez este avião tenha sido o pior. Registo o desconforto na Air France. 

Da minha ingenuidade derivada dos livros e dos filmes de espionagem ou com isso parecidos, não há palavra que inspire mais terror, mais sensação de estado policial e de esbirros ao serviço do ditador comunista do que securitate. Não sei bem porquê, mas sei que segurança ou security ou securité não traduzem uma espécie de cacofonia temível. Penso que a palavra será romena, ou coisa parecida - e eu nunca estive na Roménia, mas entrei na Hungria e na Checoslováquia quando a cortina de ferro não era um adereço da Zara Home.

Estação de Woodley Park, Washington

Vem isto a propósito da entrada no aeroporto em Washington. Seria uma coisa temível, do tipo securitate, se não tivesse estado este ano na Índia, pelo que me habituei aos procedimentos que são iguais lá e cá: longas filas de gente, leitura digital do passaporte e dos quatro dedos dedos de uma mão, fotografia (derivado ao facto da câmara estar fixa, a fotografia foi-me tirada de baixo, o que me deu um ar absolutamente facínora), seguido de uma inspecção visual muito apurada por parte da gente do SEF local, mais leitura digital dos cinco dedos de cada mão (primeiro quatro, depois um, depois mais quatro, depois mais um) com uma conversa do tipo: de onde vem, quanto tempo fica, em que hotel, o que vem cá fazer. Respondi que vinha para uma série de reuniões com associações de pais e médicos ligados à oncologia pediátrica. Talvez o meu inglês não seja muito bom e haja uma outra tradução para a palavra, ou a menina que me interrogou não ouviu nada do que eu disse, porque se despediu com um sorridente enjoy

Enfim, é isto.  Durante os próximos dias é tempo de falar sobre oncologia pediátrica, de ouvir falar de oncologia pediátrica, de ouvir histórias de drama, sofrimento e esperança, e de descobrir o que me comove agora, nesta fase da vida, porque as minhas comoções já não são iguais às de 2006, quando comecei nestas reuniões.  E é tempo de rever amigos que se vão fazendo. Talvez não seja tempo de turismo, porque o tempo é pouco.

JdB

09 outubro 2017

Duas Últimas

Tomei contacto com os letristas de fado com mais atenção e pormenor aquando da preparação da minha tese de mestrado. Li o que se escrevia até ao advento da censura, em 1925, li o que passou a escrever-se quando Amália Rodrigues lançou o álbum Busto, em 1967. Entre uma data e outra aquilo que Daniel Gouveia e Francisco Mendes chamaram a idade de ouro dos letristas. Em três sextilhas ou numa quadra glosada em décimas há uma história que se conta, um destino que se canta. Quem compunha tudo isto era gente pouco letrada, marinheiros, motoristas de praça, presidiários, empregados de escritório.

Deixo-vos com a Casa da Mariquinhas, do novo álbum de Camané que canta Marceneiro. Independentemente de se gostar do fadista, tomem atenção à letra, a alguns pormenores, a algumas preciosidades, como a expressão "quadros de gosto magano". Eram grandes poetas, digam lá o que disserem...

JdB

08 outubro 2017

27º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 21,33-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo:
«Ouvi outra parábola:
Havia um proprietário que plantou uma vinha,
cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar
e levantou uma torre;
depois, arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe.
Quando chegou a época das colheitas,
mandou os seus servos aos vinhateiros para receber os frutos.
Os vinhateiros, porém, lançando mão dos servos,
espancaram um, mataram outro, e a outro apedrejaram-no.
Tornou ele a mandar outros servos,
em maior número que
os primeiros.
E eles trataram-nos do mesmo modo.
Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo:
‘Respeitarão o meu filho’.
Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre si:
‘Este é o herdeiro;
matemo-lo e ficaremos com a sua herança’.
E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no.
Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?».
Eles responderam:
«Mandará matar sem piedade esses malvados
e arrendará a vinha a outros vinhateiros,
que lhe entreguem os frutos a seu tempo».
Disse-lhes Jesus: «Nunca lestes na Escritura:
‘A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se a pedra angular;
tudo isto veio do Senhor e é admirável aos nossos olhos’?
Por isso vos digo:
Ser-vos-á tirado o reino de Deus
e dado a um povo que produza os seus frutos».

07 outubro 2017

Pensamentos Impensados

Mãozinha
Em Oeiras já não é o primeiro que rouba mas faz.

Festas
Os partidos pequenos não fazem manifestações, fazem minifestações.

Velocidades
O campeão dos 100 metros planos é um best célere.

Mudanças de estado
Só consigo adormecer quando estou acordado.

Lembranças
Uma das vantgens de se ser amnésico é que não se tem saudades do futuro.

Igualdades
Eram gémeos mas não eram verdadeiros nem falsos, eram apenas músculos das pernas.

Vistas
Camões olhava para os inimigos olho nos olhos.

Baralhar
Jogar às cartas é mais fácil do que dirigir uma orquestra sinfónica; o baralho só tem quatro naipes.

SdB (I)

06 outubro 2017

04 outubro 2017

Pensamento Impensado

Outros tempos

Há uns 70 ou 80 anos, os brasileiros compunham sambas com letras divertidas. Aqui vai uma:

Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse um boi à unha.

SdB (I)

Posts (parece que em português é "postas", no feminino) dos dias que correm

O texto abaixo foi publicado a 3 de Agosto de 2015. Repesco-o, não só porque gosto deste final, mas porque ultimamente tenho pensado nesta ideia do I want to hear...

JdB

***



O excerto de filme acima é o final do África Minha. Apesar da cena do clube exclusivamente masculino aberto para uma mulher, retratando com elegância britânica uma certa rendição àquela dinamarquesa tão cheia de coragem e infortúnio, o que me captou a atenção foi uma cena um pouco mais tarde, aos 1'52", quando a protagonista diz ao criado: I want to hear you say my name. Farah, o criado, sabe o nome de Karen, a patroa, e di-lo de forma pausada, como um sentimento que se quer vivido em câmara lenta, para que seja mais claro e fique a ressoar no tempo. Ela sabe que ele sabe - e, não obstante, quer ouvi-lo.

Todos nós, cada um à sua maneira, somos baronesas Blixen, pedindo aos nossos mais próximos que profiram o nosso nome. Karen representa uma variedade imensa de frases que desejamos ouvir de forma pausada e lenta: sou teu amigo, amo-te, fazes-me falta, ajuda-me, tenho saudades, não sei o que fazer, vem comigo senão perco-me, diz-me como farias, fica, quero ficar, ajuda-me, sei que sabes, nem sempre é fácil, havemos de chegar, sou feliz, sonho-te feliz, quero que digas o meu nome. Todos sabemos que eles sabem e, não obstante, queremos ouvi-lo, nem sempre realizando que por vezes as baronesas Blixen são os outros, remetendo para nós o papel de Farah.

Karen nunca mais viu Farah. Farah nunca mais viu Karen. O que os uniu para sempre não foi a casa que se encheu de refinamento europeu, a escola que ensinou o bê-á-bá às crianças, o gramofone que rompeu de beleza musical um silêncio já de si belo. O que os uniu para sempre foi a cheia que tudo levou, o fogo que tudo consumiu, a avioneta que se despenhou sobre um sonho. O que os uniu para sempre, por mais irónico que possa parecer, foi o fim de uma vida quimérica construída no sopé de uma montanha. O que os uniu para sempre foi um diálogo composto de duas frases:

- I want to hear you say may name.
- You are Karen, m'sabu.

JdB 

03 outubro 2017

Duas Últimas

Tenho tiques de conservador. Tenho tiques de velho. E tenho tiques de pessoa que se imobilizou no tempo e que, por questões tão válidas como o seu oposto, não quer adaptar-se àquilo que uns chamam evolução, enquanto outro lhes chamam, depreciativamente, modernices

Vem este intróito a propósito de gastronomia e de uma conversa de há alguns dias com uma rapaziada que dobrou há pouco os 40 anos. 

No meu tempo - e não há conversa mais de velho do que dizer no meu tempo - um hambúrguer (é assim que se escreve em português) era um hambúrguer: um bife de carne picada, geralmente redondo, que se come frito ou grelhado, servido no pão ou em prato (fonte Infopédia); por outro lado, um gaspacho era um gaspacho: sopa servida fria, preparada com pão, tomate, pimento, cebola e alho, e temperada com azeite, sal e vinagre (mesma fonte, para economia de meios). Por isso, quando se pedia um hambúrguer ou um gaspacho sabíamos o que estávamos a pedir, e tínhamos uma legítima expectativa do que nos poriam à frente. Hoje é tudo diferente. Há hambúrgeres que não têm um grama de carne e gaspachos que são feitos de morangos, ou de cereja em cama de e com redução de. 

Evoluímos? Não, apenas mudámos a nomenclatura das coisas - e isto sem qualquer valor acrescentado, a não ser um exercício de criatividade linguística. É imobilismo querermos que um hambúrguer seja aquilo e que um gaspacho seja aquilo? Não, porque também não é imobilismo querer que uma cadeira se chame uma cadeira e um casamento seja um casamento. As palavras não valem todas o mesmo e, do ponto de vista da simplificação educativa, não podemos querer  que seja inócuo convidar um vegetariano a comer um hambúrguer: ah, não te preocupes, não leva carne, tem apenas pão me mafra e queijo philadelphia...

Deixo-vos com um gaspacho que não leva tomate e um gaspacho feito comme il faut.  La violetera, cantada por Nana Caymmi, brasileira, e por Sara Montiel, que imortalizou a música, num ano particularmente relevante.

JdB



02 outubro 2017

Pensamento Impensado

Pós de eleições

Segundo leio na internet, Marcelo terá dito que, se não querem escolher, depois não se podem queixar. A ser verdade esta citação, daqui digo ao Senhor Presidente: ERA O QUE MAIS FALTAVA.

Sou abstencionista porque a lei me permite, pelo que não cometo nenhum crime, pago todos os imposto com que as Finanças me sugam. Marcelo também vem com umas arengadas sobre o dever cívico. Quanto a isto, acho que dever cívico é não cuspir para o chão, não deitar lixo pela janela e pagar os impostos. O Sr. Presidente também fala em problemas de consciência, o que é coisa que não tenho, pois não sou político. 

Concluindo, direi a Marcelo que tenho direito a queixar-me, pois sou um bom cidadão.

SdB (I)

Poemas dos dias que correm

Entre o Bater Rasgado dos Pendões

Entre o bater rasgado dos pendões
E o cessar dos clarins na tarde alheia,
A derrota ficou: como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhões.

Foi em vão que o Rei louco os seus varões
Trouxe ao prolixo prélio, sem idéia.
Água que mão infiel verteu na areia —
Tudo morreu, sem rastro e sem razões.

A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.

Só no luar que nasce os pendões rotos
’Strelam no absurdo campo desolado
Uma derrota heráldica de ignotos.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

***

Aos Vencidos

Quando é que emfim virá o claro dia,
- O dia glorioso e suspirado! -
Que não corra mais sangue, esperdiçado
Á luz do Sol que os mundos alumia?! -

Que os vencidos não vejam a agonia
Do seu tecto de colmo incendiado,
E se ouça retumbar o monte e o prado,
Ao tropel da velloz cavallaria?!

Quando é que isto será? - Quando na vida,
Virá ella, a doce hora promettida,
Hora cheia d'amor, e desejada!...

Em que fataes Cains, fartos da guerra,
Nosso sangue não beba mais a terra...
- E nem mesmo a Justiça use d'Espada?!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'

01 outubro 2017

26º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 21,28-32

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos do povo:
«Que vos parece?
Um homem tinha dois filhos.
Foi ter com o primeiro e disse-lhe:
‘Filho, vai hoje trabalhar na vinha’.
Mas ele respondeu-lhe: ‘Não quero’.
Depois, porém, arrependeu-se e foi.
O homem dirigiu-se ao segundo filho
e falou-lhe do mesmo modo.
Ele respondeu: ‘Eu vou, Senhor’.
Mas de facto não foi.
Qual dos dois fez a vontade ao pai?»
Eles responderam-Lhe: «O primeiro».
Jesus disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Os publicanos e as mulheres de má vida
irão diante de vós para o reino de Deus.
João Baptista veio até vós,
ensinando-vos o caminho da justiça,
e não acreditastes nele;
mas os publicanos e as mulheres de má vida acreditaram.
E vós, que bem o vistes,
não vos arrependestes, acreditando nele».


***

Quando pecadores e prostitutas passam à frente a caminho de Deus

Jesus terminou a sua viagem para Jerusalém, a cidade santa em que entrou aclamado como Messias, filho de David, pelos discípulos que o acompanhava, e pelas multidões; expulsou do templo quantos impediam que fosse uma casa de oração e secou simbolicamente a figueira que não dava frutos. Estas ações causam uma profunda indignação da parte das autoridades religiosas legítimas mas perversas, «sacerdotes e anciãos», que intervêm publicamente perguntando a Jesus com que autoridade realiza esses gestos provocadores. Mas Jesus não responde, antes põe-lhes uma pergunta relativa à missão de João Batista: missão querida por Deus ou missão que João tinha inventado por si?

Este questionamento não recebe, todavia, uma resposta, e então Jesus dirige-lhes três parábolas: a dos dois filhos, a dos vinhateiros assassinos e a dos enviados ao banquete nupcial. De facto, são três parábolas com as quais Ele procura causar um arrependimento naqueles adversários que pouco tempo depois serão os seus acusadores e os seus condenadores. As parábolas são para Jesus precisamente um instrumento para fazer mudar o pensamento e a atitude àqueles a quem são dirigidas. Mas aqui acontecerá exatamente o oposto. Em vez de se interrogarem e converter, sacerdotes e anciãos indignar-se-ão ainda mais e, compreendendo que tais narrativas se dirigem precisamente a eles, endurecem ainda mais o seu coração, acrescendo a sua oposição e o seu ódio para Jesus.

Escutemos então a primeira parábola, em obediência ao ordenamento litúrgico que a prevê para o próximo domingo (Mateus 21, 28-32, 26.º Domingo do Tempo Comum). «Que vos parece?», introdução que é um convite a pensar e a discernir, para que no fim haja uma outra pergunta da parte de Jesus, que requererá uma resposta clara e decisiva. A resposta inicial do primeiro filho interrogado pelo pai para ir trabalhar na vinha é irreverente, uma desobediência consciente. Mas este filho que ousa resistir ao pedido do pai e lhe nega a obediência, de seguida muda de opinião e vai trabalhar na vinha. Assim mostra que se arrependeu; pensando, mudou de opinião e a não vontade transformou-se para ele em obediência possível.

Entra depois em cena o segundo filho. O pai dirige-se a ele do mesmo modo que o anterior, e a resposta que obtém é positiva: «Sim, Senhor!», mas depois não vai. Estamos perante um filho respeitoso do pai, que até o chama “Senhor”. É respeitoso talvez por medo, porque incapaz de dizer um “não” ao seu pai. Ou é respeitoso porque nutrido de formalismo: diz sim ao pai, como é requerido pela lei e pela prática, mas depois não faz a vontade. Talvez pense que o pai não se recorde que ele não colocou em prática o que ele lhe disse… Não conhecemos as motivações da não execução do convite: resta o facto de que a vontade do pai não é cumprida. Este segundo filho contenta-se em fazer uma declaração verbal segundo o desejo do pai e não perceciona a própria incoerência: como um cego não vê, não se lê a si próprio…

É evidente que o que sucede nesta parábola sucedia aos tempos de Jesus, entre os crentes judeus, mas sucede ainda hoje nas comunidades de discípulos, na Igreja. Houve sempre, há e haverá quantos dizem «Senhor!, Senhor!», invocam-no e têm muitas vezes o seu nome na sua boca, mas depois não fazem a a vontade do seu Pai que está nos céus. As palavras de Jesus querem desmascarar estes crentes que confiam no seu frequentar assembleias onde ressoa a palavra do Senhor, que participam nas refeições com o Senhor, comendo e bebendo à sua mesa, mas que na verdade sem serem concretamente discípulos no seguimento de Jesus, na tentativa de conformar a sua vida à sua. Militantes, certo, sem serem discípulos!

Graças a esta parábola somos convidados a discernir no nosso hoje aqueles que de facto, sem o saber, são representados pelo primeiro ou pelo segundo filho: homem religiosos orgulhosos da sua pertença confessional e falam, falam…; dizem sim à vontade de Deus, mas diariamente não a realizam, porque para eles é mais importante aparecer do que ser e fazer. Do outro lado, aqueles que parecem dizer constantemente não a Deus porque não se mostram religiosos, porque não proclamam a sua pertença religiosa, e depois, ao contrário, vivem-na no anonimato, no dia a dia, realizando a vontade do Senhor sem o nomear e por vezes sem o conhecer. Perfeitos anónimos para nós, mas que simplesmente «praticam a justiça, amam a misericórdia e caminham humildemente com Deus». Eis então, pontual, no fim da parábola, a pergunta de Jesus: «Qual dos dois filhos cumpriu a vontade do pai?», a que se segue a esperada resposta dos sacerdotes e dos anciãos: «O primeiro!».

E então Jesus convida-os a extrair as consequências, comentando: «Em verdade vos digo: “Os pecadores manifestos e as prostitutas passarão à vossa frente no Reino de Deus”». Palavras de Jesus duras como pedras, porque constituem o juízo pronunciado sobre aqueles ouvintes. Mas porquê? Não será talvez isto paradoxal? E todavia acontece assim, porque aqueles que publicamente aparecem como pecadores e por todos são tidos como tal, são presas da vergonha e sentem neles o desejo, mais ou menos escutado, de mudar de vida: desejam sair da sua vida de pecado, que os outros desprezam e condenam. Os homens religiosos, ao invés (aqui os sacerdotes e os anciãos, interlocutores de Jesus), que aparecem como observantes mas têm pecados ocultos, dado que todos os veneram e vêem segundo o seu estatuto, não querem absolutamente mudar de vida. Uns estão por isso abertos a um convite à conversão, enquanto os outros pensam que não têm necessidade de qualquer conversão: daqui nasce a sua hipocrisia, a sua rigidez, o seu julgar e espiar os outros, sem nunca se interrogarem sobre si; estão sempre prontos a absolverem-se porque aos olhos das pessoas são justos e até exemplares…

Repito-o, para que seja bem claro. Quem peca às ocultas nunca é impelido à conversão por uma reprovação que lhe venha dos outros, porque continua a ser venerado e estimado por aquilo que da sua pessoa aparece exteriormente: esta é a doença da maior parte das pessoas, entre as quais se destacam precisamente as religiosas e devotas, que acreditam ser exemplo para os outros. Quem, ao contrário, é um pecador público, encontra-se constantemente ao juízo e à condenação de outros, e de por isso é um induzido a um desejo de mudança. Só animado por tal desejo, só no arrependimento que nasce de um coração esmagado – isto significa etimologicamente “contrito” -, o ser humano pode tornar-se sensível à presença de Deus.

E assim Jesus anota que, quando veio João Batista a pedir a conversão, os pecadores públicos responderam enfaticamente ao convite e converteram-se, enquanto os sacerdotes e as autoridades religiosas, apesar de terem visto isso, nada mudaram do seu comportamento para aderir à sua mensagem. Com esta parábola Jesus interroga por isso cada um de nós, se quisermos escutá-lo. E cada um de nós, quanto mais é reconhecido pela sua profissão de fé, mais deve interrogar-se: digo sim a Deus só por palavras, ou realizo sem clamor e sem ostentação, humildemente, a sua palavra? Em síntese, «no último dia, no dia do juízo» - como recita uma afirmação tradicionalmente atribuída a Agostinho, que deveríamos ter bem mais presente -, «muitos dos que se pensavam dentro serão encontrados fora, enquanto muitos que pensavam estar fora serão encontrados dentro do Reino dos Céus».


Enzo Bianchi
In "Monastero di Bose", Itália
Trad.: SNPC
Publicado em 29.09.2017

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