03 maio 2018

Textos dos dias que correm

A cruz e a flor de lótus: O diálogo entre cristianismo e budismo

Durante a sua recente visita a Myanmar, o papa Francisco prodigalizou-se em gestos de respeito e atenção para com o budismo e as suas tradições. Dirigiu-se aos monges budistas, extraiu citações da escritura antiga do "Dhammapada" e relacionou os ensinamentos budistas com os cristãos, em particular com os de S. Francisco de Assis. Ele desejava que não houvesse qualquer dúvida sobre o facto de a Igreja católica estar pronta para o diálogo com o budismo.

Este entusiasmo tão explícito poderia surpreender alguns observadores ocidentais bem conhecedores das relações muitas vezes difíceis entre o cristianismo e as outras fés do mundo. Não foi há muito tempo que alguns missionários qualificaram Buda como um demónio maligno. Todavia, na sua aproximação ao budismo, o papa Francisco, na verdade, nada mais faz do que voltar a uma antiquíssima tradição cristã - ao tempo em que as duas fés avançavam lado a lado.

Tempos houve em que a flor de lótus e a cruz estavam entrelaçadas. O diálogo inter-religioso é sempre uma questão delicada, porque toda a religião que reclame um acesso exclusivo à verdade encontra dificuldade em colocar as outras fés religiosas dentro do seu próprio esquema cósmico. Grande parte das Igrejas cristãs defende que só Jesus é o Caminho, a Verdade, a Vida, e muitos sentem como obrigação levar essa mensagem aos não crentes em todo o mundo. Mas isso cria um conflito fundamental com os seguidores de famosas figuras espirituais, como Maomé ou Buda, que pregaram mensagens totalmente diferentes. Atendo-se a uma interpretação rígida da Bíblia, alguns cristãos consideraram estas fés como rivais enquanto não simplesmente falsas, mas também como armadilhas deliberadamente preparadas pelas forças do mal.

Nos últimos 40 anos, a Igreja católica romana empreendeu repetidas batalhas sobre a questão da unicidade de Cristo e expressou a sua intolerância para com aqueles pensadores que fizeram esforços audaciosos para se abrirem a outras religiões. Embora o diálogo entre o cristianismo e o islamismo tenha estado sempre em primeiro plano, é o encontro com o hinduísmo e, acima de tudo, com o budismo que suscitou a controvérsia mais dura no interior da Igreja.

Ao longo dos anos, os teólogos Aloysius Pieris e Tissa Balasuriya, originários do Sri Lanka, tiveram muitas discussões com os críticos do Vaticano, e o próprio Vaticano ordenou uma investigação sobre o teólogo norte-americano Peter Phan, que aparentemente considerou o budismo do Vietname, a sua terra de origem, como um caminho paralelo para a salvação. A Igreja católica teme há muito a perspetiva do sincretismo, a diluição da verdade cristã numa mistura com outras fés. Uma visão que surge na forte tradição do cristianismo desenvolvida na Europa desde os tempos de Roma.

No entanto, há outra tradição antiga que sugere uma direção muito diferente. A europeia não é a única versão da fé cristã, nem é necessariamente a mais antiga descendente da Igreja antiga. Durante mais de mil anos, outros ramos da Igreja fundaram comunidades prósperas na Ásia e, em termos absolutos, o número dessas Igrejas não era comparável ao pouco com que a Europa podia contar nesse tempo.

Estas comunidades encontraram a sua ascendência não em Roma, mas diretamente no movimento originário de Jesus da Palestina antiga. Elas espalharam-se pela Índia, Ásia Central e China, sem hesitar em compartilhar as suas convições com outras grandes religiões orientais e a aprender delas.

O quanto esses cristãos estavam prontos para ir longe é demonstrado por um símbolo surpreendente que apareceu no início da Idade Média em lápides e incisões de pedra, tanto no sul da Índia quanto ao longo da costa da China. Nele é muito fácil, em primeiro lugar, reconhecer uma cruz, mas depois de um olhar mais atento percebe-se que a base do desenho - a raiz da qual a cruz germina - é a flor de lótus, símbolo budista da iluminação. Muitas Igrejas tradicionais dos tempos modernos condenariam essa mistura como uma traição à fé cristã, um exemplo de multiculturalismo sem controle. No entanto, as preocupações do sincretismo não incomodavam os primeiros cristãos da Ásia, que se chamavam a si próprios "nasraye", nazarenos, como os primeiros seguidores de Jesus.

Eles socializavam tranquilamente com as outras grandes religiões monásticas e místicas da época e, além disso, acreditavam que tanto o lótus quanto a cruz eram portadores da mesma mensagem de busca de luz e salvação. Se esses nazarenos puderam encontrar sentido na cruz-lótus, por que não deveriam os católicos de hoje ou os outros herdeiros da fé inspirada por Jesus? Muitos cristãos, ao reconhecerem que hoje em dia a sua fé está a tornar-se uma religião global, procuram maneiras de repensar muitas das suas aquisições fundamentais. Mesmo os líderes da Igreja moderna que reconhecem a rapidez com que a Igreja se está a expandir no sul do planeta tendem a considerar os valores e tradições europeus como a norma irrenunciável em matéria de liturgia e teologia, assim como de música e arquitetura.

No entanto, o cristianismo, desde os primeiros tempos, foi uma fé intercontinental, firmemente enraizada na Ásia e na África, assim como na própria Europa. Ampliando a nossa visão para examinar a fé que se espalhou da Irlanda à Coreia desde o século XIX, podemos ver as muitas maneiras diferentes pelas quais os cristãos interagiram com outros crentes através de um encontro que reformulou ambos os lados.

No melhor dos casos, esses contactos permitiram às tradições não apenas uma troca de ideias, mas também um entrelaçamento produtivo e enriquecedor, num formidável capítulo da história cristã que as Igrejas ocidentais não esqueceram. Para compreender esse facto é necessário reconfigurar os nossos mapas mentais.


Philip Jenkins 
In L'Osservatore Romano
Trad.: SNPC 
Publicado em 26.04.2018

5 comentários:

Anónimo disse...

Querer a paz é um elevado e difícil desígnio. Unir as correntes religiosas também. Juntando-me a este post ácerca do budismo, pergunto-me por qual motivo escreveu aqui, isto:
http://adeus-ate-ao-meu-regresso.blogspot.pt/2014/05/v-domingo-da-pascoa.html

Cumprimenta eo

JdB disse...

eo,

Obrigado pela sua continuada e visível visita.
Não sei se interpreto bem a sua pergunta, uma vez que não escrevi nada nesse V Domingo da Páscoa de 2014. Limitei-me a transcrever o evangelho do dia - o que faço desde sempre - e um excerto de um texto mais vasto de D. Manuel Clemente.
Falhou-me alguma coisa no seu comentário?

Anónimo disse...

Estimado,

É precisamente o Evangelho. Não foi parar lá pelo gesto divino, mas pelo seu.
Será só relê-lo para me entender. Sou portador de costelas farisaicas (quem não as tem?) e há discursos, falares que não aprecio. Senão estaria em contradição, em negação, daquilo em que creio.
Budísmo? Taoísmo? Confucionismo? ...
Desde o princípio do Homo sapiens sapiens (dizem que há mais de 1 milhão de anos) que a busca do divino é um facto doloroso. Sempre houve homens bons com notáveis diferenças sobre a maioria. Mas só um é que teve o 'desplante' de afirmar que era Deus. Claro que foi condenado; e pela religião mais firme jamais existente e pelo mais grave crime religioso: blasfémia. E ponto.

Envenenadamente (sei que sou venenoso) cumprimenta; com a estima que vós me mereceis há anos.

eo

JdB disse...

ei,

Antes do mais, espero ser / continuar a ser merecedor da sua estima.
Um esclarecimento muito simples (e espero que a simplicidade não seja insultuosa): o Evangelho, de facto, não foi lá parar por mão divina - mas pela minha. Mas, e felizmente, estou certo, não foi eu que o escolhi, limitei-me a ser um braço tecnológico - aquele evangelho era o específico daquele dia. Foi aquele evangelho que se leu, penso eu, no mundo católico naquele exacto dia. Só (ou muito) por isso lá estava. Nem sempre as leituras são do nosso agrado...

Anónimo disse...

Claro que continua a ser estimado pela personalidade (como defino uma pessoa) que mostra ser nos seus escritos.

Um enorme mas 'menor' ponto, é a sua 'boa educação', a sua atenção para com as outras pessoas.

Como já lhe escrevi, todos temos textos que não apreciamos.
O meu fariseísmo nasce, lentamente, após anos de estudo (leitura) e pelo Senhor me ter feito tropeçar em gente cristã de grande nível intelectual. De agora e de há séculos.

Assim como há coisas que não aprecio, há coisas que aprecio — e muito.
Por isso, entre nós haverá sempre a possibilidade de divergências. O que é uma linda prova de sermos humanos e cristãos. E que, eu penso, nunca será motivo de zangas nem de arrufos.

Após esta série de frases algo desgarradas, me despeço com o título deste blog.

eo

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