08 maio 2018

Textos dos dias que correm

Conheci o João Pedro Vala nas aulas de mestrado e tinha por ele consideração e respeito. Penso que ele já andava a preparar o doutoramento, o que fazia de mim um caloiro relativamente a ele. Nunca mais o vi nas aulas mas apanho-o aqui e ali, nomeadamente em recensões no Observador. Com a devida vénia - ao autor e ao site dos jesuítas Ponto SJ, onde o fui buscar - aqui vai um artigo que fala de muito mais do que de um prémio atribuído num festival.

JdB

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Um filme vê-se às escuras

Durante a última semana e meia, tive a oportunidade de integrar o júri do Prémio Árvore da Vida no IndieLisboa, juntamente com o Padre José Tolentino de Mendonça e a Professora Olívia Reis. A proposta que nos era feita era a de premiar um filme que privilegiasse ‘valores espirituais e humanistas, a par das qualidades cinematográficas da obra’. Parece-me, por isso, importante não só justificar a nossa escolha, mas também esclarecer o que quer dizer ao certo premiar o valor espiritual de um filme, uma vez que este é um problema que se presta a bastantes equívocos, que talvez possam ser melhor compreendidos se analisarmos a reacção de muitos católicos ao filme de 2016 de Scorsese, Silêncio.

A polémica que se gerou a propósito do filme que conta a história da apostasia do jesuíta Sebastião Rodrigues, durante a sua missão no Japão, partia de um pressuposto que pode ser sintetizado da seguinte maneira: Scorsese estava no filme a fazer a defesa da apostasia; a apostasia é imoral, logo, o filme é imoral. O absurdo de raciocínios deste género deveria ser evidente. Nenhum de nós (pelo menos, assim espero) assume que Lewis Carroll nos esteja a sugerir que é boa ideia deixarmos os nossos filhos perseguir coelhos tocas adentro de forma a conhecerem monarcas; nenhum de nós assume que Melville esteja a sugerir que devamos abandonar os nossos empregos para nos alistarmos num baleeiro. No entanto, ainda que saibamos vagamente que um livro não é aquilo em que as personagens (por maior protagonismo que tenham) acreditam, nem sequer aquilo que estas fazem, tendemos a fazer uma confusão tremenda acerca deste ponto. Uma confusão que podemos encontrar, aliás, tanto no católico mais conservador como na feminista mais fervorosa, como ficou claro com a polémica a propósito da canção de Chico Buarque, “Tua Cantiga”, acusada de louvar um marido infiel que abandona a família, apenas por ser esta a história que a música conta. Scorsese, longe de se pronunciar moralmente acerca da escolha do seu protagonista, estava apenas, com a vida de Sebastião Rodrigues, a contar-nos a história de alguém que se viu forçado a viver uma vida espiritual no silêncio absoluto, sem qualquer contacto visível com a religião em que acreditava e sem poder sequer exteriorizar aquilo que de mais profundo se passava dentro de si. No fundo, era a história de alguém que se vê subitamente obrigado a viver sem rede, sem poder contactar com o ponto de apoio com que contara toda a sua vida. A haver algo de errado nisto, a reclamação não deve ser apresentada a Scorsese, mas a quem criou o mundo.

Mesmo que o realizador concordasse em absoluto com a opção de Sebastião Rodrigues, ainda assim, nunca seria isso o que o filme é. Só uma ideia de arte que trate o espectador como uma criança e que exija de uma história que revele na derradeira frase (de preferência com uma rima) a bonitinha moral que pretende transmitir pode imaginar que é a opinião de Scorsese sobre a apostasia aquilo que define o valor moral do filme. E ainda menos será o valor moral de uma obra de arte a definir o seu valor efectivo. Para perceber isto basta reparar que não existe um único romance do Fitzgerald que não seja infinitamente superior a qualquer biografia da irmã Lúcia. A superioridade espiritual de um filme não é, então, mesurável pelas diferenças e semelhanças entre aquilo em que o realizador acredita e o que nós professamos. Tal como não acredito que Jorge Bergoglio venha a ser o grande cineasta dos nossos tempos, também duvido que seja Elia Kazan que me venha a explicar o que devo fazer para alcançar a salvação. Os ‘valores espirituais e humanistas’ de um filme terão, portanto, que estar num outro sítio, um sítio que preferencialmente não queira embeber a película em água para não arranhar as nossas gargantas.

Premiar a espiritualidade de um filme é, portanto, uma outra forma de premiar a capacidade de representar pessoas. Pessoas boas e más, que erram muitas vezes e que acertam algumas. Queremos sempre que a arte puna os maus e recompense os bons, quando a arte tem que estar muito mais preocupada em mostrar-nos pessoas a sério num mundo a sério, pessoas que nunca se enganam e que raramente têm dúvidas. Pessoas que acreditam em coisas que nos enojam e que em todos os frames ridicularizam aquilo em que mais convictamente acreditamos.

Este ano, decidimos entregar o primeiro prémio a “Russa”, uma curta-metragem de João Salaviza e Ricardo Alves, Jr sobre a demolição de duas das cinco torres do bairro do Aleixo, no Porto, em 2013. Ou melhor, sobre uma reclusa que regressa em licença precária a um bairro do Aleixo agora já mais vazio e que se entristece com o fim do sítio onde cresceu. Ainda que, como qualquer outra pessoa, tenha opiniões muito claras acerca da necessidade de uma regulação forte no mercado imobiliário português, em nenhum momento senti qualquer necessidade de me informar acerca da situação concreta deste bairro, que conhecia apenas superficialmente. Em nenhum momento senti que precisasse de saber se foi correcta a decisão da Câmara Municipal do Porto de demolir estas duas torres, se estas torres dariam lugar a novos e mais dignos prédios de habitação social, se as pessoas de lá seriam realojadas. Nem por um segundo me perguntei se a sentença da protagonista fora ou não justa. Nada disto foi relevante para a nossa decisão. Porque a espiritualidade de um filme não se mede pela legitimidade das causas dos protagonistas, mas pela capacidade que este tem de nos mostrar pessoas diferentes de nós, pessoas a sério e não apenas reproduções bidimensionais de nós mesmos.

Sempre gostei muito mais de ir ao cinema do que de ver filmes em casa. No cinema, está escuro e há silêncio e é assim que tem que ser. No cinema, temos que nos calar e apagar para, por um segundo, deixarmos de ser nós os protagonistas. Para, por um segundo, ouvirmos qualquer coisa que não ecos.

João Pedro Vala, 7 de Maio de 2018

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